O lago do Diabo Prt.1
Para os fins do mês de abril do ano de 1845, M. Charles Dumas, rico armador de Saint-Malo, foi com sua família residir em uma deliciosa quinta, situada no vale que fica abaixo da cidade de Dinan.
M. Dumas, tendo ganho muito dinheiro como armador, queria desfrutar alguns anos de repouso antes de sair deste mundo, em que deixava uns poucos de filhos, já todos educados e a abrigo das necessidades, em virtude da bela fortuna que tinha ganho para eles muito honradamente.
A quinta que escolheu era conhecida no lugar pela denominação de Sableu, e quando dela tomou posse, havia dois anos que não era habitada.
M. Dumas, portanto, achou-a na mais completa desordem. O capim tinha-se alastrado pelos jardins, as árvores não haviam sido podadas, alguns muros achavam-se caídos pela ação da chuva e do vento; o assoalho e o teto estavam todos podres: em suma, parecia uma verdadeira tapera. M. Dumas, longe de desanimar, meteu mãos à obra com o ardor de um velho marinheiro, habituado a lutar com os caprichos e violências dos elementos: em menos de um mês estava tudo direito e parecia um céu aberto. Uma tão completa transformação, feita em tão pouco tempo, produziu no lugar certa impressão.
Os habitantes da circunvizinhança estavam habituados a considerar Sableu como uma espécie de sepulcro, como um sítio medonho, que não era lícito a ninguém aproximar-se. E mais de um camponês deu às vezes uma volta bem grande, quando linha do transitar por acolá de noite, só para não passar por junto do Lago do Diabo.
O Lago do Diabo era uma lagoa que ficava pegada à casa, inteiramente encoberta por um pequeno bosque de choupos, e a respeito da qual corriam pelos arredores certos boatos assustadores.
A certas horas e em certos dias, principalmente, ouviam-se ali sinistros gemidos: uma barca, com um homem e uma mulher dentro, escorregava-se silenciosamente pela turva água do lago. Quando chegava ao lugar mais fundo, o homem saía da barca o metia-se no lago até a cintura. Depois, a mulher fazia o mesmo, e depois, afinal, um cadáver.
A mulher chorava: era pálida, e os cabelos desgrenhados voavam-lhe ao vento. O cadáver tinha uma grande ferida no peito esquerdo, da qual jorrava sangue em borbotões.
Não se ouvia o menor ruído, a menor palavra... Reinava o mais lúgubre silencio, apenas de quando em quando interrompido pelos soluços da mulher.
Isto durava coisa de meia hora. Depois do quê, o homem e a mulher tornavam a entrar para a barca, dirigindo-se para a margem do lago.
Porém, quando apontavam as primeiras barras do dia, os dois fantasmas desvaneciam-se!
M. Charles Dumas sabia desde muito tempo de todas as histórias ridículas que se contavam a respeito de Sableu. Antes, porém, de comprar aquela propriedade, tomou a resolução de que devia ir à origem de tais boatos, e o que então soube provou-lhe mais uma vez a facilidade com que a imaginação popular empresta formas de lendas aos acontecimentos mais triviais e mais reais.
Contaremos aos nossos leitores a história que contaram a M. Dumas a este respeito.
Havia dez anos — portanto, em 1835 — que tinha residido em Sableu um inglês chamado Holder, que ali vivia sozinho com sua mulher.
M. Holder tinha cinquenta anos e Mme. Holder apenas vinte e cinco. Passavam os dois esposos em Dinan os meses de inverno, e o resto do tempo na sua quinta. Tinham poucas relações, que não excediam de alguns ingleses e de uma ou duas famílias da aristocracia bretã. M. Holder parecia amar apaixonadamente a sua mulher que, pela sua parte, lhe mostrava a mais viva afeição.
Apesar destas aparências que inculcavam a maior harmonia doméstica, não tardou a correr o boato de que M. Holder era homem de gênio irascível, violento e brutal; que seu ciúme tinha arrancos temíveis; que não tinha quase outra paixão senão a caça, e que fazia Hélène a mais infeliz de todas as mulheres. Dizia-se, também, que Mme. Holder não era lá de uma virtude muito irrepreensível e que não queria bem a seu marido; que antes de ir para Dinan, tinha dado escândalos em outro lugar em que morara; e que, enfim, não havia mesmo muita certeza que fosse casada com M. Holder.
Tais eram os falatórios que circulavam, quando chegou a primavera de 1837. M. Holder e Hélène retiram-se de Dinan nos princípios do mês de abril, como tinham por costume, e voltaram para Sableu. M. Holder parecia o mais franco dos homens e Hélène a mais dócil e submissa de todas as mulheres.
A primavera anunciava-se debaixo dos mais felizes auspícios; as árvores brotavam folhas verdes, as flores rebentavam, os passarinhos modulavam os seus primeiros gorjeios de amor. A natureza inteira parecia animar-se e sorrir-se às embalsamadas carícias da primavera.
Hélène levantava-se cedo e, com um grande chapéu de palha na cabeça, corria sozinha, como uma criança, pelas ruas do parque e por baixo de espessas árvores que rodeavam o lago. M. Holder, pela sua parte saía ,também, à mesma hora, de espingarda no ombro e cão de caça atrás. E, assim, andava muitas vezes uma ou duas léguas antes do almoço.
À exceção de um pequeno pavilhão, que estava situado perto da lagoa e conservava-se sempre fechado, a habitação de M. Holder não era limitada de todos os lados senão por campos de trigo e de linho, por córregos pouco fundos e pela estrada de Paris. Nada, portanto, havia que recear, nem dos vadios, nem dos curiosos. Além disto, as visitas que ali se faziam eram raras e curtas. Iam sempre depois do almoço e retiravam-se antes do jantar. M. Holder achava-se, pois, quase sempre sozinho com sua mulher, sem que nem um nem outro se queixasse de tal isolamento.
Hélène era uma das criaturas mais encantadoras com que a imaginação do poeta tenha jamais sonhado.
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Contos que você não deveria ler
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