Capítulo 42

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O homem Morto

O homem e seu facão acabam de limpar a quinta rua do bananal. Ainda lhes faltavam duas ruas. Mas, como nestas abundavam as ervas daninhas e as malvas-silvestres, a tarefa que tinham pela frente era coisa muito pouca. Por conseguinte, o homem lançou um olhar satisfeito aos arbustos roçados e cruzou a cerca de arame para estirar-se um pouco sobre o relvado. Mas, ao baixar a cerca de arame farpado e passar o corpo, seu pé esquerdo resvalou sobre um pedaço de casca de madeira desprendida do poste, enquanto o facão escapulia de sua mão. Quando caía, o homem teve a sumamente longínqua impressão de não ver o facão caído no chão.

Estava já estendido sobre o relvado, deitado sobre flanco direito, como ele queria. A boca, que pouco antes abrira-se  em toda a sua extensão, acabava, também, de fechar-se. Estava como desejava estar: os joelhos dobrados e a mão esquerda sobre o peito. Só que, atrás do antebraço, e imediatamente por debaixo do cinto, surgiam de sua camisa a empunhadura e a metade da folha do facão, mas o restante dele não se via.

O homem tentou, em vão, mover a cabeça. Olhou de esguelha para a empunhadura do facão, ainda úmida do suor de sua mão. Considerou, mentalmente, a extensão e a trajetória do facão dentro de seu ventre e teve a certeza — fria, matemática e inexorável — de que acabava de chegar a termo a sua existência. A morte. No transcurso da vida, pensamos muitas vezes que um dia — após anos, meses, semanas e dias preparatórios — chegaremos por nosso turno ao umbral da morte. É a lei fatal, aceita e prevista. E tanto é assim que costumamos deixar levar-nos prazenteiramente pela imaginação a esse momento — supremo entre todos — em que exalamos o último suspiro. Mas, entre o instante atual e esta expiração futura, quantos não são os sonhos, transtornos, esperanças e dramas que presumimos em nossa vida! O que ainda nos reserva esta existência repleta de vigor, antes de sua eliminação do cenário humano! Este é o consolo, o prazer e a razão de nossas divagações mortuárias: a morte está tão distante, e  é tão imprevisível o que devemos ainda viver! Ainda?

Não se passaram dois segundos: o sol está exatamente na mesma altura. As sombras não avançaram um milímetro. Bruscamente, acabam de resolver-se para o homem estendido as divagações a longo prazo: ele está morrendo. Morto. Pode considerar-se morto em sua cômoda postura. Mas o homem abre os olhos e fita. Quanto tempo passou? Que cataclismo sobreveio no mundo? Que transtorno da natureza transpira o horrível acontecimento?

Vai morrer. Fria, fatal e ineludivelmente, ele vai morrer.

O homem resiste — é tão imprevisto este horror! — e pensa: É um pesadelo. É isto. O que mudou? Nada. E olha. Não é, por acaso, o mesmo bananal? Não vem, todas as manhãs, para limpá-lo? Quem o conhece como ele? Vê perfeitamente o bananal, muito raleado, as largas folhas desnudas ao sol. Ali estão elas, bem próximas, desfiadas pelo vento. Agora, porém, não se movem... É a calma do meio dia.  Mas devem ser doze horas. Por entre as bananeiras, lá adiante, o homem vê, do duro chão, o teto vermelho de sua casa. À esquerda, entrevê a mata e a capoeira de canelas. Não consegue ver mais, mas sabe, muito bem, que às suas costas está o caminho do porto novo; e que, na direção de sua cabeça, lá embaixo, jaz, no fundo do vale, o Paraná, adormecido como um lago. Tudo, tudo exatamente como sempre: o sol de fogo, o ar vibrante e solitário, as bananeiras imóveis, a cerca de estacas muito grossas e altas, que logo terá que trocar...

Morto! Será possível? Não é este um dos tantos dias em que, ao amanhecer, saiu de sua casa empunhando o facão? Não está mesmo ali, a quatro metros dele, o seu cavalo, de cara branca, farejando parcimoniosamente o arame farpado? Mas, ouça! Alguém assovia. Não pode ver quem é, porque está de costas para a estrada. Mas sente o ressoar dos passos do cavalo na pontezinha... É o menino que segue todas as manhãs para o porto novo, às onze e meia. E sempre assoviando. Do poste descascado, que quase toca com as botas, até a cerca viva de mato, que separa o bananal da estrada, são exatos quinze metros. Sabe perfeitamente disto porque ele mesmo, ao levantar a cerca, mediu a distância.

O que está, então, acontecendo? Este é, ou não, um  meio-dia comum, como tantos outros em Misiones,  em sua mata, em seu pasto, em seu bananal raleado? Sem dúvida! Relvado curto, cones de formigas, silêncio, sol a pino... Nada, nada mudou. Somente ele está diferente. Há dois minutos, sua pessoa, sua personalidade vivente, já nada tem a ver nem com o pasto que ele mesmo deu forma com a enxada durante cinco meses consecutivos, nem com o bananal, obras exclusivas de suas mãos. Nem com sua família. Ele foi arrancado bruscamente, naturalmente, por obra de uma casca lustrosa e um facão no ventre. Faz dois minutos: está morrendo.

O homem, muito fatigado e estendido no relvado sobre o flanco direito, reluta sempre a admitir um fenômeno dessa transcendência, ante o aspecto normal e monótono de tudo o quanto vê. Sabe bem a hora: onze e meia... O menino de todos os dias acaba de transpor a ponte.

Mas não é possível que tenha resvalado!... O cabo de seu facão (logo deverá trocá-lo por outro; já tem pouco fio) estava perfeitamente comprimido entre a sua mão esquerda e o arame farpado. Após dez anos de floresta, ele sabe muito bem como se maneja um facão de roça. Está apenas muito fatigado do trabalho desta manhã e descansa um tempinho, como de costume. A prova?... Mas esse relvado, que entra agora pela comissura de sua boca, ele mesmo o plantou em trechos de terra distantes um metro uns  dos outros!  Já este é o seu bananal. E este é o seu cavalo de cara branca, resfolegando cautelosamente ante as farpas do arame! Pode vê-lo perfeitamente. Sabe que ele não se atreve a dobrar a esquina do alambrado, porque o homem está estendido quase ao pé do poste. Distingue-o muito bem. E vê os fios escuros de suor que exsudam do quadril e da garupa. E o sol cai a prumo e a calma é muito grande, pois nem uma franja das bananeiras se move. Todos os dias — como este — ele tem visto as mesmas coisas.

...Muito fatigado, mas ele apenas descansa. Devem ter passado já vários minutos. E às quinze para as doze, de lá de cima, do chalé de teto vermelho,  descerão a sua mulher e seus dois filhos ao bananal, a buscá-lo para almoçar.  Ouve sempre, antes das outras, a voz de seu menino mais novo, que quer soltar-se da mão de sua mãe: “Papai! Papai!”

Não é isso?...  Claro, está ouvindo! É a hora. Ouve efetivamente a voz de seu filho... Que pesadelo!... Mas este é um dia como qualquer outro, trivial como todos, está claro! Luz excessiva, sombras amareladas, calor silencioso de forno sobre a carne, que faz o cavalo suar, imóvel, diante do bananal proibido.

...Muito, muito cansado, mas nada além disto. Quantas vezes, ao meio-dia como agora, cruzou, voltando para casa, esse pasto, que era capoeira quando ele chegou,  e antes havia sido mata virgem? Voltava, então,  também muito fatigado, com o seu facão pendente da mão esquerda, a lentos passos. Pode ainda afastar-se mentalmente, se o desejar. Pode, se quiser, abandonar por um instante seu corpo e ver o dique por ele construído, a trivial paisagem de sempre: o pedregulho vulcânico com gramas rígidas; o bananal e sua areia vermelha, o alambrado apequenado no declive,  que se acotovela com a estrada. E, mais adiante, pode ver ainda o pasto, obra exclusiva de suas mãos. E, ao pé de um poste descascado, deitado sobre o flanco direito e as pernas recolhidas, exatamente como todos os dias, pode ver a si mesmo como um pequeno vulto assoleado sobre o gramado — descansando, porque está muito exausto.

Mas o cavalo, rajado de suor,  e cautelosamente imóvel  diante da esquina do cercado, vê também o homem no chão, e não se atreve a contornar o bananal, como desejaria. Ante as vozes que já estão próximas — Papai! —,  volta  para o vulto  — por um longo, longo momento — as orelhas imóveis. E, por fim tranquilizado, decide passar entre o poste e o homem estendido, que já descansara.

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