The dinner

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Passei a manhã inteira sentindo uma ansiedade crescendo dentro do meu corpo. Não consegui comer direito, e olhar para os ponteiros do relógio parecia que não estava ajudando, as horas estavam contra mim. Procurei me ocupar de todas as maneiras possíveis, limpei o celeiro inteiro, inclusive o teto que estava coberto de teias de aranhas. Dei banho em cookie, que estava coberto de lama. Ajudei mama no almoço e passei algumas horas cuidando de Alice enquanto Wynonna precisou sair para uma reunião de urgência do trabalho. Por volta das três da tarde, minha irmã retornou e percebi que chegaria atrasada no meu tão esperado compromisso. Digitei uma mensagem rápida, pedindo desculpas pelo imprevisto, mas confirmando minha presença mesmo que com alguns minutos de atraso.

Coloquei um vestido solto amarelo, com um decote discreto na parte das costas, e um par de tênis branco nos pés. Antes de ir até sua casa, parei no caminho para comprar alguma bebida, acho que seria de extrema falta de educação se eu chegasse em sua casa para jantar sem levar um agrado. Respirei fundo quando vi a varanda, ela estava sentada na cadeira da frente. A distância percebi que ela estava vestida de forma informal, e avaliei minha roupa achando que talvez eu estivesse arrumada demais. Por fim, parei junto ao carvalho que fazia uma ótima sombra em frente à casa. Ela desceu a varanda e começou a se aproximar, parando quando me viu saindo do carro. Nós duas nos encaramos, e nenhuma se moveu. Ela usava um suéter azul escuro desleixadamente enfiado no seu jeans desbotado, e me recordei do seu corpo magnifico que ficava escondido por trás. Quando ela finalmente respirou fundo e sorriu.

- Oi, Haught. É bom te ver de novo, desculpa o atraso.

Meu comentário nem parece lhe surpreender, ela me encara com um ar amigável. Então depois balança a cabeça e começa a sorrir.

- Me surpreenderia se tivesse chegado no horário certo, Earp.

Percebi que eu estava lutando para me controlar. Não esperava que isso fosse acontecer logo que eu chegasse aqui. Senti que alguma coisa se remexia dentro de mim, um tremor profundo e antigo, me senti tonta por um breve momento. Sem trocar mais nenhuma palavra, nos aproximamos, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Ela me envolveu com seus braços, puxando-me para mais perto e me abraçando com força, tornando aquele momento real.

Ficamos assim durante um longo tempo, até que ela por fim se afastou um pouco tentando olhar para mim. Mais de perto, eu podia reparar em cada detalhe no seu rosto e ver as mudanças de todos esses anos. Em seus olhos haviam uma nova esperteza, parecia mais cautelosa, no entanto, a maneira doce como ela me abraçava fez com que eu constatasse o quanto senti saudade dela desde nosso último encontro.

- Fico feliz que você tenha vindo.  — Ela recuou mais um pouco. — E uau, você está fantástica. Amarelo é uma cor que, definitivamente, fica muito bem em você.

Senti meu rosto esquentar, exatamente como dez anos atrás.
- Obrigada. Você também está linda. — E sem dúvida ela estava.

- E você como sempre, muito gentil. — Ela sorriu sem graça. — Precisa de ajuda com alguma coisa no carro?

Sua pergunta me trouxe de volta ao momento presente, me fazendo tomar consciência do real motivo para qual eu tinha vindo. Não deixe a situação sair do controle, Waverly. Eu repetia diversas vezes em minha mente. Eu não queria que as coisas ficassem difíceis. Mas, meu Deus, aqueles olhos. Seus olhos magnificamente doces. Me afastei e respirei fundo, enquanto abria novamente a porta do carro. Procurando falar calmamente.

-   Oh, por favor. Eu trouxe laranjas para fazer um suco, e algumas cervejas. Não sabia ao certo o que você gostaria de beber. — Fiz uma pausa de um segundo. — Droga, você não é de beber mais. Desculpe, esqueci.

- Wave — Ela se aproximou rindo, tomando o saco de laranjas das minhas mãos. — Acho que você lembra de como fiquei no final de semana passado, não é? Então definitivamente, eu ainda bebo. Eu só sou mais... Cautelosa. Mas eu agradeço por ter comprado, não precisava. É muita gentileza da sua parte.

Não respondi de imediato, surpresa por não conseguir encontrar uma resposta para aquilo. Durante aquele momento, tive um pressentimento, senti um nó no meu estômago. O que quer que fosse, não era algo bom. O ar foi subitamente cortado pelo latido forte de Angus na parte superior da varanda, ele latia sem parar, e percebi que ele corria atrás de Calamity Jane. Com o barulho, ela se virou.

- Coitada, não tem um minuto de paz. — Soltou um suspiro, gritando em seguida. — Angus, deixe-a em paz, por Deus!

Em silêncio, caminhamos até sua casa, e subitamente pensei no quanto as coisas haviam mudado entre nós desde então. Não sei, mas éramos como duas estranhas, e eu podia dizer isso só de olhar pra ela. Reconheço que dez anos de separação é muito tempo. Tempo demais.

- Você está bem? — Perguntou suavemente, tentando sorrir. — Você parece que está um pouco distante.

- Eu? Não, não... Só estava pensando se ainda teremos tempo para você me mostrar o que disse que gostaria. — Tentei disfarçar, mudando o assunto.

- Acho que temos tempo ainda, pelo menos posso te mostrar um pouco do que gostaria. — Disse dando de ombros. — Por que não vamos agora?

Ela parou nos degraus da pequena escada da varanda, e olhou para a porta da frente.

- Por mim, está perfeito. Temos só que guardar essas coisas, não acha?

- Oh, claro. Eu faço isso e alguns segundos, dê-me aqui. — Ela puxou a pequena caixa de cervejas das minhas mãos e entrou rápido na casa, não demorando muito para retornar.

Ela começou a caminhar até uma parte lateral do condomínio onde morava, eu apenas a segui. Chegamos em uma grande cerca branca, com um portão azul, onde havia uma pequena trilha logo adiante, no meio de duas árvores enormes.

- Se estivéssemos em um filme de terror, eu diria que isso não acabaria muito bem. — Nicole soltou uma risada alta, balançando negativamente a cabeça.

- Você vai se surpreender, Earp. Tenho absoluta certeza disso.

Nicole retirou um molho de chaves do bolso, abrindo passagem para nós no portão de grade azul. Caminhamos em direção a trilha, e comecei a ouvir um barulho suave de água ao longe. E avistei um rio logo a frente. Ela olhou para trás, provavelmente buscando capturar minha reação. Ela puxou minha mão, gesto que me surpreendeu, e caminhamos deixando uma distância mínima para que não nos tocássemos acidentalmente.
Nicole andava de maneira graciosa, era como se ela deslizasse no meio das árvores. Ela sempre teve traços de aventureira, eu sabia, e agora enquanto caminhávamos juntas naquele lugar cheio de obstáculos no chão, tive ainda mais certeza.

- Há quanto tempo você descobriu esse lugar? — Perguntei quando a trilha deu lugar a um pequeno monte de terra com uma grama verdinha.

- Desde que me mudei pra cá. É uma reserva da cidade, onde apenas os moradores daqui do condomínio tem acesso.  De início, era aberto ao público pelo outro lado do rio, mas muitos adolescentes começaram a ir para usar drogas escondido, e os moradores ficaram com medo. Entraram com um pedido na prefeitura e conseguiram o acesso único.

- Atletas, aposto. — Ela fez que sim com a cabeça, e continuou.

- Eles são os piores, você sabe. Infelizmente tive que prender alguns deles durante aquele tempo. Você precisava ver como os pais reagiam, era como se nós estivéssemos errados em fazer apenas o nosso trabalho. — Disse parecendo brava, provavelmente não era fácil estar na pele dela nessa época. — Teve uma vez que — Ela parou no caminho, passando a mão sobre os cabelos e rindo sem parar. — Wynonna me acompanhou em uma das rondas na reserva, e pegamos alguns garotos fumando perto do rio. Sua irmã colocou os pobres coitados pra correr gritando “Se por acaso eu encontrar novamente com vocês aqui, eu vou enfiar essa porcaria no... — Ela fazia o sinal com as mãos.

- Ó céus. — Gargalhei. — Isso é a cara dela.

Caminhamos um pouco mais em silêncio, e percebi o motivo que ela pediu para que eu chegasse tão cedo.  No topo de um pequeno monte, paramos. A distância, eu podia ver o Rio e logo atrás o Sol resplandecia alaranjado. Eu podia sentir os olhos dela cravados em mim, enquanto eu olhava fixamente em direção a belíssima vista.

- Nicole, isso é...

- Eu sei. — Ela sorriu. — Eu não poderia deixar de te mostrar isso.

- Parece aquele rio que você me levou uma vez, você lembra?

- Sim, claro que lembro. — Ela respondeu, sem arriscar dizer mais nada. — Tive muitas recordações ali, Waverly.

Ri baixinho, me sentindo estranhamente contente com o que tinha acabado de ouvir. Ela parou ao meu lado logo que chegamos à margem do Rio, e pousou suavemente as mãos sobre meus ombros, me obrigando a encará-la. Enquanto a luz do sol que caia ao longe, refletia nos olhos dela. Nos olhamos fixamente por um segundo, e percebi seu olhar cheio de perguntas.

- Não podemos demorar muito, eu esqueci de trazer a lanterna. — Ela sorriu, e com o polegar, apontou por cima dos ombros. — Acho que você ia gostar de chegar ali na margem um pouco.

Caminhei pela doca até a margem, enquanto observei Nicole parada atrás de mim. Ela sempre adorou fins de tarde, onde o aroma das folhas se misturava com o de café sendo coado. O vento ficou um pouco mais forte, batendo contra as árvores, e eu adorava o som que as folhas faziam. Ouvi-las me ajudava a relaxar. Olhei para trás e vi Nicole me observando.
Meu Deus, ela era tão bonita. Mesmo depois de todo esse tempo.

Ela então começou a caminhar em minha direção, enquanto os grilos começavam suas cantorias. Olhei ao redor mais uma vez, eu queria guardar aquele momento no lugar mais bonito dentro de mim. Ela pisou na doca, e a madeira rangeu sob seus pés. Me peguei imaginando quantas vezes ela já esteve naquele lugar sozinha, e quais teriam sido seus pensamentos. Senti uma necessidade de saber mais sobre ela, o que ela fez e tudo o que viveu todos esses anos. Uma brisa quebrou o silêncio, senti frio e cruzei meus braços. Nicole se aproximou, chegando ao meu lado, e eu podia sentir o seu calor.

-  Esse lugar tem tanta paz. — Eu disse, com meus pensamentos a mil.

- Eu sei. Venho aqui muitas vezes só pra ficar perto da água. Me sinto bem.

- Eu também viria, se fosse você.

- Anda, vamos embora. Os mosquitos estão começando a ficar ferozes, e eu estou morrendo de fome.

***

O céu já estava escuro quando eu e Nicole começamos a caminhar, lado a lado, na direção da sua casa. No silêncio, minha mente vagueava e eu começava a me sentir insegura. O que será que ela estava pensando sobre o fato de eu estar ali? Minutos depois, chegamos e Angus nos saldou, colocando seu focinho molhado por baixo do meu vestido. Nicole expulsou amorosamente o pobre coitado, que saiu com o rabo entre as pernas.

- Você deixou algo a mais que precise pegar? — Perguntou apontando pro carro.

- Não, eu acredito que tirei tudo o que precisava.

-  Tudo bem. — Ela disse enquanto chegava à varanda e subia as escadas. Ela retirou as chaves do bolso mais uma vez, abrindo a porta e me dando espaço para passar primeiro. A casa estava com um cheiro maravilhoso de limpeza, e eu tive a certeza que ela havia passado o dia inteiro em uma grande faxina.

- Você se importa se eu for rapidinho ao banheiro?

- Não, claro que não! Vá em frente, eu vou aproveitar para guardar umas compras que fiz hoje.

Nossos olhos se encontraram por alguns instantes, e quando virei as costas, eu sabia que Nicole tinha os olhos cravados em mim. Mais uma vez senti um estremecer interno.
Durante os minutos seguintes, percorri a casa, andando até o banheiro, e dessa vez reparando em cada detalhe. Das outras vezes, eu estava muito mais nervosa e passei despercebida por várias coisas. Quando voltei pra cozinha, vi Nicole de perfil guardando suas compras. Por um breve momento ela parecia aquela garota que conheci aos 17 anos e isso me fez parar na porta por uma fração de segundos. Puta merda, pensei, se controle. Lembre-se que vocês irão jantar, como duas velhas conhecidas.

Ela estava em pé ao lado do balcão, cantarolando baixinho alguma canção, em meio a porta do armário aberta e sacolas de supermercado vazias no chão. Ela sorriu em minha direção antes de guardar mais latas dentro de um dos armários. Parei a alguns centímetros dela e me encostei no balcão, colocando uma das minhas pernas sobre a outra para ganhar apoio.

- Eu acho a sua casa linda, já falei isso?

- Já. — Ela levantou os olhos da última sacola de compras que estava esvaziando. — Fico feliz por achar isso.

- Você fez a reforma inteira sozinha?
Ela soltou um riso contido.

- Não! Quando comecei, eu queria fazer tudo sozinha, mas era trabalho demais. Eu levaria séculos para concluir. E acabei contratando algumas pessoas, ou eu estaria vivendo até agora com tudo dentro de caixas. Eu queria acabar o quanto antes! Quer beber alguma coisa antes de eu começar a preparar o jantar?

- Pode ser, o que você tem?

- Pra falar a verdade, não muita coisa. Água, café e cervejas. As que você trouxe eu coloquei na geladeira, mas acredito que ainda não estão na temperatura correta. Mas tenho outras aqui, já geladas, caso queira.

- Cerveja está bom então.

Ela foi até a geladeira e voltou com uma garrafa. Tirou dois copinhos do armário, colocou eles diante de mim e nos serviu. Sorri diante do seu gesto, tomei um gole e mirei a janela.

- Eu adoro a luz que entra aqui pela manhã, a cozinha fica tão bonita. — E ela concordou com a cabeça.

- Fica, não é? Mandei colocar essa janela maior exatamente por esse motivo. Assim como nos quartos.

- Certeza que suas visitas gostam disso. A não ser, é claro, que seja o tipo de pessoa que goste de dormir até mais tarde.

- Pra dizer a verdade... — Ela coçou a nuca, sem jeito. — Ainda não tive nenhum hóspede. Eu nunca soube quem deveria convidar.

Pelo seu tom de voz, eu sabia que ela estava dizendo aquilo da boca pra fora. Era óbvio que ela deve ter trazido alguma garota aqui antes, inclusive Grace. E parece que ela sentiu que eu perguntaria algo referente a loira, antes que eu tivesse a chance de insistir no assunto, ela mudou o rumo da conversa.

- Eu vou colocar os tomates para cozinhar e fazer o molho. — Disse pousando seu copo no balcão. Foi até o armário e pegou uma panela grande com tampa. Levou-a a pia, colocou alguns tomates dentro e encheu-a com um pouco de água, colocando a mesma sobre o fogão em seguida.

- Posso dar a mão em alguma coisa?

- Claro. — Ela respondeu por cima do ombro. — Você poderia cortar alguns legumes para refogar na frigideira? Tenho alguns na geladeira, e ali naquele armário você encontra uma tábua de cortar.

Enquanto Nicole preparava algo sobre a pia, bebi mais um gole da cerveja antes de pousar o copo no balcão e ir buscar os legumes. Fui até a geladeira e encontrei cebola, cenoura e cebolinha. Nicole veio até a geladeira, me movi um pouco para o lado, lhe dando espaço. Eu pude sentir seu cheiro junto a mim. Familiar e inconfundível.  E senti seu braço roçar o meu quando ela se inclinou para pegar outra cerveja e um pote de milho, voltando em seguida pro fogão.

Ela abriu a cerveja, despejou ela por cima de um pouco de frango e acrescentou o milho na panela, junto com outros temperos. Depois de remexer na água, foi até a porta da frente verificar o motivo de Angus latir tanto. Antes de retomar, ela parou ao meu lado e olhou fixamente para mim que cortava os legumes. Enquanto fazia isso, me perguntei o que rodeava seus pensamentos. Um dia transamos, no outro discutimos, depois nos agarramos no banheiro sujo de um bar e agora estamos cozinhando juntas na cozinha da sua casa. Nada daquilo parecia fazer muito sentido.

Mas a vida pode surpreender, pensei.

- Como você está indo aí? — Ela perguntou, vendo que eu já tinha quase terminado.

- Tudo bem, estou quase terminando. Mais alguma coisa que eu possa fazer pra ajudar?

- Pensei em incluir um pouco de pão, o que acha?

- Lasanha combina com pão? — Ela riu, sem tirar os olhos da panela que já fervia.

- Não faço ideia! Ganhei esses pães de uma vizinha. — Ela disse, colocando uma travessa ao lado do fogão. Aos poucos, ela colocava porções de molho, enquanto montava a lasanha. — Ela produz alguns, são realmente bons.

Ela se inclinou sobre o balcão, pegando um punhado de queijo dentro de um pote ao lado da pia, finalizando o prato. Lavou as mãos e se virou para falar comigo.

- Quer sentar lá fora um pouco? Acho que agora só nos resta esperar.
- Claro!

Ela enxugou as mãos, e fomos juntas para a varanda. Ela acendeu as luzes, e sentou em uma das cadeiras. Quando percebeu que nossos copos estavam vazios, entrou por um momento e retornou trazendo outra garrafa cheia.

- Você estava sentada aqui fora quando cheguei, não estava?

- Estava. Eu adoro ficar sentada aqui, acabou virando um hábito. — Disse enquanto se arrumava na cadeira novamente.

- Da pra ver o porquê. — Comentei olhando ao redor. — Então, o que você tem feito nos últimos dias?

- Na verdade, não faço outra coisa a não ser trabalhar. Finalmente consegui pegar uma folga de dois dias, depois de muito insistir lá no departamento.

- É, eu sei como é! Você não faz ideia da burocracia que foi para finalmente eu conseguir pegar alguns meses de férias.

- Meses? Uau. — Ela ria, levando o copo até a boca.

- Eu sei, ninguém acredita quando eu digo. Mas em minha defesa, eu trabalhei anos sem aceitar tirar um único dia de folga, ok?

- Waverly Earp, uma profissional dedicada. — Soltei um riso envergonhado.

Ficamos sentadas em silêncio, enquanto eu permanecia pensando sobre o passado. Nicole bebericava a cerveja aos poucos, mas acho que a minha já estava até ficando quente.

- Você lembra quando fugíamos para nos encontrar?

- Lógico! Teve uma noite que cheguei em casa tarde, e quando entrei os meus pais estavam furiosos. Ainda consigo ver a cara do meu pai enquanto minha mãe esperneava no meio da sala. Eu juro, era como se eu tivesse morrido. — Ela gargalhou. — Acho que foi a primeira vez que eles realmente perceberam que o que eu tinha com você era sério. Naquele dia, minha mãe teve uma conversa séria comigo, falando sobre minhas obrigações e que eu deveria cumprir as regras da casa. Lembro que fui dormir magoada aquele dia.

- Eu lembro, você me contou no dia seguinte. Aquilo também me deixou triste. Eu gostava muito dos seus pais, e cheguei a achar que eles não gostavam de mim.

- Eles eram loucos por você! Minha mãe perguntou por você tantas vezes, Wave, até mesmo pouco antes de falecer.

Havia tristeza em sua voz, e ela tinha razão em se sentir assim. Ela olhou em direção ao céu e passou a mão nos cabelos, puxando alguns fios que caiam sobre o rosto.

- Eu penso em você desde a última vez em que te vi. — Falei por fim.

- Pensa?

- Acha que não? — Perguntei parecendo realmente surpresa.

- Sei lá, você nunca respondeu minhas mensagens. Escrevi durante muito tempo, mas nunca recebi uma resposta sequer.

- Eu sei. — Fechei os olhos, e balancei lentamente a cabeça. — Foi uma decisão difícil, e estupida, devo admitir.

- Eu sempre ficava imaginando o que você estaria fazendo. E o que estaríamos fazendo, se tivéssemos ficado juntas.

- Como é a Grace?

Ela hesitou, me olhando assustada. Definitivamente não esperada aquele tipo de pergunta. Trazer o nome de Grace à tona fez surgir um sentimento de culpa, e por um momento amaldiçoei minha própria boca. Ela estendeu o braço, pegando o copo e tomando outro gole. E começou falando devagar.

- Ela é charmosa, e dedicada no que faz. Ela é professora de idiomas em uma escola que abriu recentemente aqui. Meus amigos costumam dizer que morrem de inveja de mim, porque acham ela perfeita. E de fato, ela é em alguns aspectos. Ela é compreensiva e carinhosa comigo, me faz rir, e eu sei que é louca por mim. — Ela fez uma pausa, organizando os pensamentos. — Mas eu sinto que sempre vai faltar alguma coisa.
Ela se surpreendeu com a própria resposta, e mesmo que eu quisesse perguntar o motivo, eu sabia. Sabia só pela forma que ela me olhou, mas senti que ela esperava que eu perguntasse.

- Por que?

Ela respondeu esboçando um sorrisinho e encolhendo os ombros, com a voz quase sussurrando.

- Acho que é porque eu ainda procuro o tipo de amor que eu e você tivemos.

Fiquei um bom tempo pensando no que ela tinha acabado de falar, pensando nos relacionamentos que tive nesses últimos tempos.

- E você, pensava em... Nós?

- O tempo todo. E ainda penso, principalmente nos últimos dias aqui.

- Está ficando com alguém?

A pergunta que tanto temi ouvir.

- É complicado. — Respondi balançando a cabeça.

Ficamos pensando sobre o assunto, cada uma com seu silêncio gritante. Ela não perguntou nada mais, mas aquilo seria impossível de tirar da cabeça.  Sua cerveja acabou, e ela fez uma cara de surpresa quando viu que estava vazia.

- Vou olhar a lasanha. Quer alguma coisa?

Recusei balançando a cabeça. Nicole foi até a cozinha, abriu o forno e verificou se o queijo já estava gratinado. Ajustou o timer em forma de gatinho que ela tinha em uma prateleira acima do fogão e retirou outra cerveja da geladeira antes de voltar pra varanda. Enquanto ela fazia tudo isso, fiquei pensando nela, junto com outras milhares de coisas. Eu a amava mesmo ou eu só amava o que nós duas fomos um dia? Era normal sentir isso, afinal de contas ela foi meu primeiro amor verdadeiro, a primeira mulher com quem eu estive. Como que o universo esperasse que eu a esquecesse? Mas era normal sentir minhas entranhas se revirarem toda vez que ela chega perto? Era normal confessar coisas a ela que eu não diria a ninguém mais? Era normal ter vindo aqui mesmo sabendo que existem Charlotte e Grace entre nós?

- Não, Waverly, não é. — Murmurei por mim, enquanto admirava o céu estrelado. — Não é nada normal isso.

Nicole voltou e eu sorri pra ela, contente por ela ter retornado para a cadeira ao meu lado e me tirando de meio de pensamentos turbulentos.

- Vai demorar só mais alguns minutos.

-  Tudo bem, eu consigo aguentar mais um pouquinho.

Então ela me olhou, e eu vi ternura em seus olhos.

- Estou tão feliz que você tenha vindo, Wave.

-  Eu também. Mas eu quase neguei o convite. — Nicole abaixou a cabeça com um sorriso enfraquecido.

-  E o que te fez aceitar?

Meu coração me obrigou a vir. Era o que eu tinha vontade de responder, mas não falei.

- Pra ver você novamente. Eu queria descobrir o que você andou fazendo todos esses anos, como você estava... Acho que começamos com o pé esquerdo desde que retornei pra cá.

- Acho que foi tudo muito... Rápido. Não sei.

- É, algo assim. — Mas eu não me arrependi, mas não diria isso e nem ficaria insistindo nesse assunto.

- Tem uma coisa que eu gostaria de te contar, mas você tem que prometer que não pode rir. — A ruiva disse colocando um dedo na frente do meu rosto, tentando segurar o próprio riso.

- Eu prometo! — Falei cruzando os dedos, e lançando beijinhos sobre eles.

- Eu fiz aulas de pintura.

- Sério? — Ela balançou a cabeça confirmando enquanto ria. — Uau, Nicole, mas isso é incrível! Por que eu iria rir?

-  Eu não sei. — Ela encolheu os ombros. — Eu acho que não tenho talento, era mais um passatempo.

- Eu duvido muito disso, sempre te achei talentosa. O que te fez ter vontade de pintar?

- É uma longa história...

- Bom, eu tenho uma noite toda. — Respondi.

-  Espera aqui, eu já volto.

Ela se levantou, e entrou no corredor depois da sala. Segundos depois, voltou segurando nas mãos um quadro emoldurado. Por um instante ela ficou ofegante quando retornou, com um sorriso nervoso nos lábios.

- Esse foi o segundo que fiz. — Disse entregando em minhas mãos o objeto. — Essa pintura foi uma das que mais gostei. Ela me parece tão real, e eu nem acredito as vezes que fui eu quem fiz. Vez ou outra eu chego perto para tocá-la. Ela me traz paz.

- Nicole isso é belíssimo! — As sombras, as formas e as cores. Tudo. — É a reserva que me levou hoje, não é?

- É sim. Você está falando sério que gostou tanto?

-  Claro! Não é possível que ninguém nunca tenha lhe dito isso.

- A minha professora de pintura me disse. Mas no fundo eu nem acreditei nela. — Ela deu uma pequena pausa antes de continuar. — Quando eu comecei a beber demais, minha mãe vivia preocupada comigo constantemente. Comecei a beber muito depois que, bem... Você foi embora. Eu bebia pra me manter acordada e bebia pra dormir, isso é bem louco se você for pensar direito, mas era algo que já fazia parte do meu dia. E céus, eu só tinha 19 anos. Então teve um dia que eu passei uma tarde inteira bebendo e fumando junto com umas pessoas erradas. E droga, Waverly — Ela sorriu fraco. — Eu fiquei muito louca, e acabei perdendo completamente os sentidos. Devo ter desmaiado ou algo parecido. Quando acordei, eu estava dentro de uma cela na delegacia, sequer fazia ideia de como eu tinha chegado lá. Quando acordei eu estava deplorável! Meu tio se aproximou devagar, com a cara mais séria do mundo, e me deu o maior sermão que já ouvi. E depois daquele dia, eu abri meus olhos sobre o que eu estava fazendo com minha própria vida. E em vez de beber, eu saia procurando coisas para fazer. Passatempos no geral, e me dediquei firme no treinamento dos cadetes. — Ela respirou fundo, enquanto tocava o quadro. — Esse quadro me deu um trabalho grande, passei longos dias nele. Pintava um pouco a cada dia, fazendo sempre alguma alteração. Eu simplesmente não conseguia parar de pintar ele. Acho que foi a forma que achei de evitar a dor que eu estava passando. Eu passava horas sozinhas lá na reserva, e eu amava.  Eu adorava a sensação de liberdade! Quando resolvi sair da turma de pintura, minha professora ficou abalada. Ela sempre dizia que eu tinha talento, mas eu nunca dei ouvidos.

- Eu não sabia disso... — Falei pegando em sua mão. — Eu sinto muito.

Ela fez uma pausa, como se organizasse os pensamentos.

- Meus pais ainda me incentivaram a continuar, mas eu preferi dar duro nos treinos da academia. Eu queria ser policial, e achava que as duas coisas juntas não combinavam muito. Então eu parei. Faz muito tempo que não seguro um pincel.

- Você acha que vai voltar algum dia?

- Não faço ideia. Acho que desaprendi.

- Ah, que bobeira! Claro que você ainda consegue, Nicole. Você tem um dom incrível, olha bem pra isso. — Eu apontava pro quadro em minhas mãos. — O talento vem do coração, isso é algo que você nunca vai desaprender.

Falei tudo isso com a sinceridade do meu coração. E ela me lançou um olhar como quem diz “você só está sendo gentil.” Mas eu realmente acreditava na sua capacidade, ainda mais agora vendo o quadro.

Não sei ao certo o que aconteceu, mas naquele exato momento eu comecei a sentir o abismo que criei entre nós se fechando. Um abismo que eu mesma havia aberto para separa a dor do prazer. Então comecei a suspeitar que dentro de mim as coisas estavam ainda mais intensas do que eu gostaria de admitir.

Talvez eu só estivesse precisando de mais um empurrãozinho. Virei para encará-la, e ela entendeu o braço para tocar em meus ombros. Em um gesto suave, como se estivesse me agradecendo por cada palavra que eu tinha acabado de falar.  Quando nossos olhos se encontraram, eu mais uma vez percebi como o que tinhamos era especial.

E, por um pequeno momento, pequenas luzes começaram a pairar dentro de mim. Como pequenos vagalumes no meio da escuridão. E me perguntei se eu não estava me apaixonando por ela outra vez.

O timer apitou na cozinha e Nicole se levantou rápido, cortando aquele momento em que estávamos. Amaldiçoei o pobre timer enquanto eu andei logo atrás dela, retirando os pães da sacola em cima do balcão. Nicole quase queimou os dedos quando puxou a travessa de dentro do forno, antes de colocá-la sobre o balcão. Ela pegou um pouco de manjericão e salpicou por cima.

- Voilà! — Ela sorria enquanto limpava as mãos em um pano de prato. E eu batia palminhas em comemoração, fazendo-a rir.

-  Eu pego os pratos!

- Claro, eles estão ali. — Ela apontou. — E ao lado estão os guardanapos.

Sentamos juntas a mesa, e por um breve momento eu não consegui olhar ela nos olhos. Eu não queria achar que tinha me enganado sobre o que tinha acabado de acontecer. Não queria olhar em seus olhos e achar que me equivoquei. E quanto mais eu pensava sobre ela, mais eu me sentia entusiasmada e esperançosa. Nicole passou um pedaço de pão, e nossos dedos se tocaram brevemente. Depois de um silêncio que já estava me matando, ela retomou a conversa de maneira fácil e sutil.

- Essa lasanha está maravilhosa, você tinha razão.

- Você está embarcando em uma aventura única. — Ela ria.

- E seu pai, como está?

Ela demorou um pouco pra responder.

- Abatido, mas aos poucos ele está tentando se recompor. Eu não posso sequer imaginar como deve ter sido sofrido para ele. — A voz dela ficou um pouco mais grave. — Tenho pensado muito nele esses últimos dias. A última vez em que eu o vi, ele chorou antes de se despedir de mim, e eu só estava indo trabalhar, sabe? Então percebi que despedidas estão ainda mais complicadas para ele, mesmo que sejam breves.

- Eu sinto muito, eu acho isso tão injusto. Sua mãe era um ser de luz incrível, eu não compreendo as leis do universo. Procuro não pensar muito sobre isso, afinal de contas dentro da minha profissão eu vejo crianças inocentes irem embora sem mais nem menos.

- Não é justo mesmo. — Ela disse com seu olhar baixo, e me arrependi de ter tocado no assunto. — Eu sinto tanta falta dela. Eu sempre digo pros meus amigos valorizarem as suas mães, porque não importa a idade que você tenha, ela sempre estará ali por você. — Disse esboçando um sorriso.

E então nós duas começamos a conversar, tentando compensar o tempo perdido de tantos anos. Nicole falou sobre seus irmãos, e como o mais novo estava começando a dar trabalho na escola depois que a mãe deles havia falecido. Falou sobre seu trabalho e sobre suas aventuras peculiares com Wynonna. Eu contei sobre a minha vida corrida em Londres, sobre minha ida na faculdade e o que eu gostava de fazer nas horas vagas. Falei sobre meu trabalho e como as crianças me adoravam. Em momento algum tocamos no nome de alguma pessoa que tivéssemos nos envolvido. Todos foram ignorados. O céu foi ficando mais escuro e a lua ia sumindo aos poucos, à medida que a noite avançava. E sem que nós percebêssemos, começamos a recuperar nossa intimidade, e o nossos laços foram se familiarizando novamente.

Acabamos de jantar, ambas satisfeitas, e a essa altura nós já não falamos tanto. Nicole virou para encarar o relógio na parede, e percebi que já estava ficando muito tarde. Através da janela, observei as estrelas que pareciam brilhar ainda mais fortes, e até Angus havia se aquietado. Eu adorei a noite, e nossas conversas. Fiquei me perguntando se em algum momento eu cheguei a falar demais e fiquei curiosa para saber quais teriam sido seus pensamentos.

- O que acha de voltarmos pra varanda? — Balancei a cabeça afirmando. — Eu vou buscar uma manta, acho que lá fora deve estar um pouco frio agora.

Pouco tempo depois, nos ajeitamos lado a lado no degrau da escada do lado de fora. Pelo canto do olho, eu a observava. Meu Deus, ela é tão linda, pensei. Por dentro eu estava sofrendo, uma mistura de dor e desejo. Algo forte aconteceu essa noite, e eu acho que simplesmente tinha me apaixonado outra vez. E agora eu sabia, ali sentada ao lado dela, eu me apaixonei por essa nova Nicole, e não apenas pela sua lembrança. A verdade era que eu nunca havia deixado de amá-la, e ali eu soube que esse era meu destino.

- Foi uma noite e tanto. — Ela disse, com a voz baixa e suave.

-  Sim. — Confirmei. — Foi uma noite maravilhosa.

Nicole mirava o céu estrelado, e lembrei que eu teria que ir embora daqui a pouco, e senti um vazio bater em meu peito. Era uma noite que eu não queria que terminasse, mas como eu poderia dizer isso a ela? O que ela poderia pensar se eu falasse que queria ficar? Eu não queria ser inconveniente, e muito menos parecer que tinha segundas intenções. Eu só queria ficar ao seu lado, em sua companhia, e nada mais.

Mas preferi não dizer nada, e então me dei como fracassada. Um morcego sobrevoou a árvore diante de nós, enquanto Calamity deslizava entre os pés de sua dona. E sem algum motivo aparente, pensei que em algum lugar do mundo haviam pessoas fazendo amor.

-  Fala alguma coisa. — A sua voz era sensual, ou era só a minha mente tentando pregar uma peça.

-  O que quer que eu fale?

-  Não sei, eu só quero ouvir a sua voz.

E sem saber o que dizer, comecei a cantarolar uma canção qualquer que veio em minha mente. Ela encostou a cabeça na madeira perto do corrimão, e fechou os olhos, como se estivesse absorvendo cada nota que saia de minha boca. E ficamos assim por um tempo, sentindo a brisa da madrugada e vez ou outra, disfrutando o silêncio gostoso entre nós, cada uma perdida em seus próprios pensamentos.

O nervoso que senti antes de chegar aqui, havia desaparecido, e me senti contente por isso. Mas agora eu estava preocupada com os sentimentos que tinham tomado conta do meu coração. As agitações que haviam começado a se espalhar como redemoinhos nos meus poros. Eu tentei negar essas inquietações, me esconder de todas elas, mas agora eu percebi que não queria que parassem. Faziam anos que eu não sentia algo parecido.

Agora sentada ali ao seu lado, me perguntei se alguma vez ela sonhou com as mesmas coisas que eu, nos anos em que ficamos separadas. Será que alguma vez ela sonhou que estávamos abraçadas assim sob o luar? Ou será que ela teria ido ainda mais longe com seus pensamentos e sonhado com nossos corpos nus e juntos de novo. Olhei pro lado, enquanto ela respirava calmamente e mantinha seus olhos fechados, e pensei nas milhares de noites vazias que ela tinha passado desde a última vez que estávamos juntas. Vê-la assim só trouxe de volta todos aqueles sentimentos, e agora eu tive a certeza que não conseguiria sufocá-los. E então, eu senti à vontade esmagadora de fazer amor com ela outra vez, eu só queria que ela sentisse o meu amor. Era a coisa que eu mais precisava no mundo agora. Mas respirei fundo, e compreendi que talvez não fosse o certo no momento. Afinal de contas, ela me convidou para jantar como uma amiga.

Pelo sorriso que se formou em seu rosto, eu cheguei a imaginar que ela poderia até ter lido meus pensamentos, e de certa forma isso me trouxe satisfação. Por alguma razão esquisita, eu não consegui imaginar ela vivendo algo parecido com essa noite com outra mulher. Depois de um tempo, ela abriu os olhos e passou as mãos pelos cabelos.

-  Você está com sono? — Perguntou, me afastando dos meus pensamentos.

- Um pouco. Acho que daqui a alguns minutos vou ter que ir embora.

-  Eu sei. — Ela disse jogando a cabeça pro lado, de um jeito neutro.

Eu não me levantei de imediato, em vez disso, peguei sua caneca e tomei um gole de sua cerveja já quente. E contemplei mais uma vez a lua ainda mais alta, as folhas balançando e a temperatura caindo, deixando a noite ainda mais fria. Depois olhei para ela de novo.

- É melhor eu ir embora. — Disse por fim, entregando a manta em suas mãos.

Nicole assentiu, levantando sem dizer nada, segurando firme a manta. Ela caminhou comigo até o carro, esmagando algumas folhas secas no caminho. Ela reajustou a própria camisa no corpo, e cruzou os braços tentando se aquecer. Estar ali em pé com Nicole parada diante de mim, me trouxe de volta a sensação de estar de pé a espera de um beijo.

- Eu me diverti muito hoje. Obrigada pelo convite.

-  Eu que agradeço por você ter aceitado, foi maravilhoso, Wave.

Quando eu abria porta do carro, ela me impediu. E puxou o ar, como se reunisse todas as forças para falar.

- Você poderia ficar, se quisesse.

Uma frase simples. Que eu sabia qual resposta teria que dar, caso eu não quisesse estragar tudo de uma vez.  “Acho melhor não.”, era tudo o que eu tinha que dizer para que o dia acabasse ali mesmo. Mas durante um longo segundo eu não disse nada.  E então eu senti os dois demônios nos meus ombros, me confrontando. Por que você não diz o que realmente quer dizer?

- Eu não quero te pressionar, nem nada parecido. — Ela coçava a nuca. — Mas eu poderia te levar até a reserva amanhã cedo, e mostrar o que eu não consegui hoje.  E bom, você seria minha primeira hospede. — Ela riu sem jeito.

E no momento em que olhei em seus olhos para descobrir uma resposta, vi a mulher por quem eu tinha me apaixonado, e de repente tudo ficou claro.

- Eu adoraria.

Nicole ficou surpresa, e não conseguiu disfarçar a expressão em seu rosto. Ela definitivamente não esperava por essa resposta. Nesse momento eu quis tocá-la, me jogar em seus braços e beijar sua boca, mas tive que me conter.

- O que você quer tanto me mostrar?

- É um lugar especial. Não vale estragar a surpresa!

- Eu vou gostar?

- Tenho certeza que você vai amar.

Ela disse enquanto saia de ré, voltando para a varanda, enquanto seus olhos refletiam o luar. Angus se aproximou quando voltamos para a cozinha, me abaixei para fazer carinho no pescoço do cão. Nicole juntava as louças sujas, e tentava organizar o balcão da cozinha.

- Você precisa de ajuda?

- Não, Wave. Não se preocupe, eu deixarei tudo para limpar amanhã. Já está tarde agora. — Ela parou diante de mim, e eu podia sentir seu olhar me analisando. — Ahn... Você pode ficar a vontade, o quarto de hóspedes fica no final do corredor, ao lado do meu.

Concordei com a cabeça, enquanto via ela sumir no corredor. O quanto de hóspedes era simples, mas com grandes janelas que me permitiram observar o céu aquela noite. O quadro que ela havia pintado, estava pendurado na parede em frente a cama e mentalmente agradeci por ele estar ali, me ajudaria a ter uma boa noite de sono. Depois de um momento, Nicole voltou com uma camisa azul clara, e ergueu-a em minha direção.

- Tome, vista isso aqui. Não é nada magnífico, mas acredito que seja confortável.  — Segurei a camisa enquanto ela respondia com um sorriso. — Eu já volto.

Ela saiu mais uma vez, mas não demorou muito. Apenas o tempo suficiente para que eu tirasse o vestido e colocasse a camiseta que me deu. Ao vesti-la, segurei firme a gola e cheirei. Tinha seu cheiro.

- Não se preocupe. — Disse sorrindo quando me pegou no flagra. — Está limpa.

- Eu sei. — Respondi com timidez. — É que ela tem um cheiro bom.

- Ainda bem. — Pude reparar que ela também trocou de roupa, e estava usando um blusão, cobrindo apenas um pedaço de sua coxa. — Bom, no armário ao lado da pia do banheiro, tem toalhas limpas se você precisar.

- Obrigada. E obrigada pela camisa também. — Dei de ombros.

Ficamos nos olhando por um breve momento. Ela parada na entrada do quarto, e eu sentada na beirada da cama. O seu olhar entregava todo o desejo que ela estava sentindo, e eu tinha certeza que ela podia ler a mesma coisa através do meu. Calmamente, ela caminhou até a ponta da cama e eu podia jurar que ela conseguia ouvir meu coração batendo no peito. Ela segurou na estrutura de ferro da cabeceira, e se aproximou do meu rosto, deixando no canto da boca um beijo demorado. Precisei segurar firme o colchão abaixo de mim.

- Durma bem, Waves. — Ela sussurrou no meu ouvido e senti meu corpo todo arrepiar.

- Você também, Haught.

Ela lançou um sorriso pouco antes de apagar a luz do quarto e encostar a porta. Aquela foi a maior prova de resistência que tive que enfrentar.

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