Prólogo

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"Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite."

- Clarice Lispector

East Lothian, Escócia. 1661

O barulho das ondas do mar e o crepúsculo ao oeste seriam elementos ideais para um encontro com sua amada. A moça se permitiu olhar para o oceano enquanto seu cavalo trotava rapidamente. Precisava chegar a tempo de alertar Clarice.

Seu corpo já mostrava sinais de fraqueza, cavalgara por cerca de duas horas, sempre se esforçando para manter distância de seus perseguidores. Ignorantes, todos eles. O medo os cegara ao ponto de não ouvirem mais a voz da razão.

Ao sair da praia, ela conseguiu ver as casas, ainda distantes. Mais alguns minutos, só precisava aguentar isso.

Quando o cavalo parou já havia anoitecido. Não lhes restava muito tempo, agir era necessário. Ela desceu do animal desgastado e encarou a casa de Clarice, as portas e janelas estavam fachadas. Aproximou-se, sua capa arrastando ao chão à medida que seus passos a anunciavam. Bateu na porta uma vez, duas. Nada. Sem alternativas, a moça afastou-se por um momento e estendeu seu braço.

- Rivelia! - A porta de madeira escancarou-se.

No interior da propriedade, o caos parecia ter prevalecido. Os poucos móveis estavam espalhados por todo lugar, a mesa ao centro estava quebrada e resquícios de um incêndio recém-apagado ainda eram visíveis.

A moça foi em direção aos aposentos de Clarice, de lá o som de um choro contínuo fez com que sua espinha congelasse. Da porta, pode ver Clarice ajoelhada ao lado das duas camas, nelas Penélope e Lorraine, suas irmãs, jaziam deitadas e inconscientes.

- Meu amor - Clarice virou-se para encará-la e correu a seus braços imediatamente.

Quando seus lábios se tocaram, ela sentiu como se pudessem vencer qualquer obstáculo. Mas assim que se afastaram a realidade voltou a assombrá-la.

- Minha querida - Clarice expressava profunda tristeza no olhar - Não pode estar aqui.

- Clarice - Elas se abraçaram - Precisamos fugir. Eles estão vindo!

Clarice abaixou o olhar, aflita.

- Não há lugar nessa terra onde eu não a seguiria - A angústia em suas palavras se transformou em lágrimas - Mas minhas irmãs garantiram que eu não pudesse fazer essa jornada ao seu lado.

- Elas a amaldiçoaram? - Ela não conseguia ver outra explicação para as irmãs estarem adormecidas.

- Como sabíamos que fariam, querida - Clarice segurou suas mãos - Escute, estamos ficando sem tempo, mas podemos nos reunir novamente.

- Não - A moça relutava a ideia de viver sem sua amada - O que quer que seja, podemos desfazer.

- Não essa maldição - Clarice encarou a pintura que recebera de presente de sua amada. No quadro, Clarice estava retratada com suas roupas rústicas, seus cachos recaíam sobre os ombros e o sorriso trazia memórias de uma tarde magnífica - O feitiço que fizeram me liga a esse quadro. Quando eu morrer, meu espírito vai habitá-lo até que a maldição seja quebrada por meio da profecia que criaram.

- Clarice - A moça encarou a amada, com pesar - Como isso é possível? Nós colocamos um feitiço de proteção sobre você.

Clarice observou suas irmãs, em um sono profundo.

- O feitiço de proteção só garantiu que minhas irmãs não saíssem impunes. Enquanto eu estiver aprisionada, elas permanecerão em um sono profundo, conservadas. Elas se associaram aos humanos, meu amor, eles estão vindo para cá, agora, com suas tochas e seus forcados. Preciso que você as leve, a carroça está esperando ao lado de fora, leve seus corpos e o quadro, elas colocaram uma barreira ao redor da casa, eu não posso sair.

A moça encarou Clarice.

- Não! - E então a beijou.

- Não há tempo, meu amor - Clarice tentou racionalizar - Teremos nossa vingança, mas você precisa ir agora.

Despedaçada, a moça transportou o quadro e o corpo das irmãs de Clarice para a carroça que a esperava. Os sons dos homens e seus gritos animalescos já podiam ser escutados.

- MORTE ÀS BRUXAS!

A moça beijou Clarice pela última vez e cavalgou para longe dali. Ao olhar para trás, a fumaça da fogueira que matara sua amada iluminava o céu. O grito da mulher que perdera sua confidente companheira fez com que as árvores ao seu redor caíssem. Mesmo o estrondo não foi o suficiente para abafar o som de seu choro.

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