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Shawn

Eu não conseguia dormir. O meu sentimento visceral de inquietude e tensão não ia embora. 

Nos sete anos desde que Jayce tinha morrido, nunca duvidei da decisão de não fazer o exame. Eu sabia o que ter consciência da doença e esperá-la vir à tona tinha feito com a vida do meu irmão. E, caso eu amolecesse e acabasse me esquecendo da agonia pela qual ele tinha passado, eu poderia sentar na cama, abrir o criado-mudo e reviver aquela lembrança dolorosa. 

Tirando do envelope a carta que eu sempre carregava comigo, acendi a luminária. Já tinha passado da hora de reler.

Shawn, 

Hoje de manhã foram necessárias três tentativas para conseguir levar a colher de cereal à minha boca. A minha mão tremia tanto que, a cada vez que chegava perto da boca, não tinha mais nada na colher. Mas, na terceira tentativa, consegui colocar um pouco de cereal na boca – mas aí quase morri engasgado porque os músculos da minha garganta já não conseguem mais engolir.

Eu sinto muito. Sinto tanto.

Não tenho mais nada além da minha dignidade. E preciso levá-la comigo e não a deixar para trás na cama que deixo molhada ou na necessidade de ser alimentado por alguém, como um bebezinho. Isso vai magoá-lo, mas sei que você vai entender por que tive de fazer isso. 

A minha última oração nesta Terra é para que você seja poupado. Caso você não seja, não tenho muito conselho a dar, exceto dizer as coisas que eu teria feito de forma diferente. Eu gostaria que a Emily nunca tivesse sabido do meu diagnóstico. Eu me culpo pelo aborto porque ela ficou transtornada por tempo demais. Depois, eu a afastei dizendo que não a amava. Mas eu amava, sim. Eu só não conseguiria fazê-la passar pelo que estava por vir, anos de sofrimento. Às vezes, quando você ama uma pessoa, é preciso abrir mão dela para que ela fique bem. Aproveite a vida, maninho. Não perca tempo se preocupando com o diagnóstico, como eu perdi. O tempo voa, quer você o aproveite, quer não. A escolha é sua.

Me perdoe e siga em frente.

Com amor,

Jayce

Li a carta meia dúzia de vezes. Em geral, quando fazia isso, eu focava na dor – precisei justificar o que o meu irmão tinha feito muitas vezes dentro da minha cabeça a fim de aceitar que era para o melhor. Mas, dessa vez, fiquei obcecado com uma passagem: "Aproveite a vida, maninho. Não perca tempo preocupando-se com o diagnóstico, como eu perdi. O tempo voa, quer você o aproveite, quer não. A escolha é sua."

Sempre pensei que o "preocupando-se com o diagnóstico" fosse o argumento para eu não fazer o exame. De que adiantaria saber, quando não haveria nada que eu pudesse fazer para prevenir a doença? Por que viver com uma sentença de morte, se eu podia simplesmente ignorar isso?

Só que...Pela primeira vez na vida, refleti se eu estava mesmo vivendo. É claro que eu tinha relações – sexuais – e um emprego que eu amava, e alguns amigos próximos. Sempre foi o suficiente para mim. Mas será que eu estava seguindo em frente e vivendo a minha vida, ou só existindo e esperando a porra do sintoma aparecer? Eu não quis saber até então para que eu pudesse viver cada dia como se fosse o último. Mas, se eu pudesse escolher como gostaria de passar o meu último dia na Terra, escolheria passá-lo com a Camila. Então será que eu estava mesmo vivendo cada dia como se fosse o último?

Reli o fim da carta novamente: "Aproveite a vida, maninho. Não perca tempo se preocupando com o diagnóstico, como eu perdi. O tempo voa, quer você o aproveite, quer não. A escolha é sua." 

Eu tinha decidido não me preocupar com o diagnóstico não fazendo o exame. Achei que não saber era o que me impedia de fixar raízes por todos esses anos. Mas, de repente, dei-me conta de que as raízes foram fixadas, e que uma planta forte havia crescido e cercado o meu coração. Não era a incerteza a respeito da minha saúde que me impedia de sair voando, era o fato de eu ainda não ter encontrado uma pessoa que me fizesse querer enfrentar a tempestade, fincando ainda mais aquelas raízes. Essa pessoa era a Camila. 

Eu amei a Summer. Ela foi o meu primeiro amor. Mas não tinha sido "a" mulher para mim. Talvez porque fôssemos muito jovens. Talvez eu sempre tivesse pensado nela como o meu primeiro amor, e lá no fundo soubesse que ela não seria o último. 

Camila – era ela.

Eu já tinha me apaixonado muito antes de conseguir admiti-lo. O que mudaria para mim agora, se o resultado do exame fosse positivo? Voltaria para a vida de sexo consensual e sem compromisso entre adultos? Qual é a diferença entre isso e não querer descobrir sobre a doença?

"Não perca tempo se preocupando com o diagnóstico..." 

Ela nem precisaria saber que fiz o exame, caso desse positivo. Mas e se eu fizesse o exame e descobrisse que era negativo?

"A escolha é sua..."

O risco de descobrir era maior do que o risco de perdê-la?

Era quase uma da manhã, mas, depois de finalmente tomar coragem para responder àquela pergunta, eu precisava conversar com alguém. Pegando o meu celular, passei pelos contatos até achar o que eu queria.

Ele atendeu com voz de sono, depois do quarto toque.

– Shawn? Está tudo bem?

Suspirei fundo.

– Sim, tio Joe. Está tudo bem. Desculpe ligar tão tarde. Mas preciso fazer um exame de sangue. Posso passar no seu consultório amanhã de manhã?

– Você está doente?

– Não. – Fiz uma pausa. – Mas agora preciso saber.

Não foi preciso explicar. Tio Joe levou um momento para processar minhas palavras.

– Me dê alguns minutos para eu me vestir. Encontro você no consultório em meia hora.

– É uma da manhã.

– Eu sei. Mas não foi fácil para você me ligar. Quero saber o que está acontecendo. Vou levar café. Se você ainda quiser fazer o exame depois de conversarmos, conheço um laboratório que abre às seis. Eu mesmo colho o sangue e levo lá. E peço urgência a eles.

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