Prólogo

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Somerset, 1857

Outono

Caso a tradição se repetisse, naquela segunda-feira teria início sua semana especial, pensou Catarina Bradley sentada num dos sofás da biblioteca, agitando seus cachinhos loiros ao mover a cabeça como se ouvisse alguma música imaginária. Satisfeita, folheava seu livro preferido, aberto sobre a saia do vestido rendado. O texto escasso e as excessivas ilustrações ela conhecia de cor, tanto que sem hesitar o substituiria pela nova história que seu pai, Ludwig, barão de Westling, traria ao voltar da vila.

Assim seria, sabia, pois se recordava de ser presenteada nos sete dias que antecediam seu aniversário e seu pai não falharia quando a filha preferida completaria dez anos. Tão logo ele chegasse, ela receberia um lindo embrulho ou uma grande caixa enfeitada com fita cor de rosa. Expectante, a menina riu de modo intimista.

― Terá surgido algo novo no velho livro que possa ter alegrado minha irmã?

― Ora, se o livro é velho como haveria de ter coisas novas, Marguerite? ― indagou Catarina, soberba, olhando para a irmã mais velha que, acomodada em outro sofá, tentava reproduzir o bordado ensinado por sua mãe, Elizabeth, a baronesa. ― O que me alegra é saber que papai trará outro para mim, caso não se decida por algo melhor.

― Pois aposto que não trará ― desafiou Marguerite com altivez, meneando sua cabeça loira. ― Ele me segredou esta manhã que está farto de mimá-la. Parece que esse ano, você receberá um presente apenas e no dia certo.

― Está mentindo! ― Catarina sentiu o rosto arder, lamentando que não fosse irmã somente de Edrick, o primogênito da família; às vezes não via razão de a irmã do meio existir.

― Se não acredita, espere e verá ― disse Marguerite, baixando os olhos para o lenço que bordava. ― Você deixou de ser a filha preferida.

― Ainda sou! Ainda sou! ― Catarina colocou o livro de lado, irritada. ― Pare de mentir, Marguerite, ou direi à mamãe!

― Está bem, não se aborreça desde já ― pediu a irmã, atenta ao bordado. ― Espere até que papai chegue sem ter trazido algo para você.

Antes que Catarina retrucasse, Cora Hupert, neta da cozinheira, entrou na sala. Tinha doze anos, cabelo preto mal penteado e usava um dos vestidos velhos de Marguerite.

― Acabei meu serviço ― disse a recém-chegada, retraída como de costume. ― Marguerite, pensei que talvez nós pudéssemos brincar.

― Isso! ― disse Catarina à irmã, porém a medir a criadinha com desprezo. ― Dê atenção a Cora e me deixe em paz.

― Estavam brigando? ― Cora quis saber, olhando de uma a outra.

― Conversávamos apenas ― respondeu Marguerite ―, mas conhece minha irmã. Catarina não gosta quando lhe dizemos a verdade. Esqueça-a!

― Há algo que eu possa fazer para ajudar? ― Cora perguntou a Catarina, irritando-a mais.

― Não preciso da ajuda de uma criada. Somente me esqueça, como ordenou sua patroa.

― Deixe-a, Cora ― pediu Marguerite, batendo no espaço vago ao lado, no sofá. ― Sente-se aqui. Hoje você será minha filhinha e aprenderá a bordar.

Com o pequeno coração endurecido pelas provocações, Catarina ignorou as duas meninas maiores. Podia ser a caçula, mas não se passaria por filhinha de faz de conta, nem obedeceria como fazia a tola neta da cozinheira. Que brincassem e a esquecessem!

Era muito nova e Catarina tinha consciência de que não sabia de todas as coisas, mas desde sempre entendia ser ela a filha preferida de Ludwig e Elizabeth; era a mais amada. Seu pai não havia dito aquelas coisas a Marguerite, nem chegaria sem um belo embrulho. Para contentá-lo, como o pai preferia, quando estivessem sozinhos deixaria que ele a apertasse em um sufocante abraço por vários minutos.

Catarina se fiou em sua certeza para acalmar-se. Quando ouviu a aproximação do pai, tinha a alegria e a expectativa restauradas. Marguerite apenas cumprimentou-o ao vê-lo entrar. Cora se pôs de pé e Catarina a imitou, ansiando receber aquilo que o empertigado barão ocultava às suas costas. Ela até mesmo aplaudiu, prevendo algo maravilhoso.

― Papai! Papai! O que me trouxe? ― Catarina se aproximou saltitando.

― Perdoe-me, minha querida ― ele pediu com falso pesar ―, mas hoje o presente será de Marguerite. Creio que você é ainda muito jovem para ter um bichinho sob seus cuidados.

Para seu horror, Catarina viu o pai revelar um cãozinho magricelo, branco e feio, que deu à filha do meio. Também surpresa, Marguerite demorou a deixar sobre o sofá seu bastidor com o bordado e se levantar.

― Papai, ele é mesmo para mim? ― Marguerite olhava com adoração o bicho feioso.

― Sim, mas antes que se alegre, quero que saiba que ele será de sua inteira responsabilidade.

― Cuidarei dele com desvelo, papai. ― Tendo o cãozinho em seu colo, Marguerite olhou para a irmã caçula e sorriu. ― Obrigada por esse lindo presente, quando nem é meu aniversário!

― Não preciso de datas tolas para presentear uma filha.

Sem mais palavras, o barão deixou a sala.

Com coragem Catarina sustentou o olhar da irmã, mesmo que sentisse vontade de chorar. Marguerite não tinha mentido afinal. Não deixou de ser a filha preferida somente, também descobrira que seu aniversário era considerado uma data tola e vira o tão sonhado presente se transformar num cão esquálido que nem a ela pertencia.

De pé, recordando-se do quanto ansiosamente esperou o retorno do pai, Catarina ficou a ver a irmã, agora sentada no tapete junto à amiga, brincando com seu presente. De súbito, a tristeza se tornou raiva, forte e bélica. Sem pensar nas consequências do que faria, a menina caminhou de modo decidido, tomou de Marguerite o magro cãozinho e o jogou na lareira.

Se ela não fosse o centro de tudo, nada mais seria.

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Olá leitoras e leitores da série Apple White! Aqui vcs conhecerão a história da irmã caçula de Edrick. Espero que gostem!

Rosa Escarlate [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora