Ouvi o despertador tocar pela segunda vez naquela manhã, o som estridente fazendo minha cabeça doer em pontadas. Era sábado, e a julgar pela forte luz que entrava pelas frestas das janelas, o dia estava ensolarado. Até demais.
Levantei calmamente, procurando o celular que não parava de tocar entre as cobertas macias e amassadas. Quando encontrei o aparelho, desbloqueei a tela e vi que já passava das oito horas. Pulei de uma vez da cama, respirei fundo quando senti o quarto todo rodar e o meu corpo tremer. Praguejei a minha irresponsável decisão de sair tarde na noite anterior.
Desci as escadas que davam para a sala principal, me perguntando se meu pai já estaria de volta aquela hora. Mas para a minha infelicidade, constatei que ele não estava.
Tomar café sozinha todos os dias consistia em um ritual que eu era forçada a cumprir, já que meu pai sempre estava viajando a trabalho. Desde criança eu tinha aprendido a me virar, tanto fisicamente quanto emocionalmente, para não depender de ninguém. Por mais que meu pai se esforçasse muito para suprir qualquer carência com um bom presente, nada no mundo poderia preencher o vazio que era não ter nenhum dos meus pais por perto. Minha mãe, por outro lado, fazia o exato oposto. Desde que tinha saído de casa para viver sua mais nova aventura romântica com um colega de trabalho, que mais tarde se transformou no seu marido mais insuportável, ela não me mandava nada. Nem um chocolate, uma bala sequer, nada. Seus alívios de consciência eram deixar que eu tivesse contato com a sua nova família, meus irmãos mais novos e seus parentes tão ridiculamente insuportáveis quanto o pai deles.
A solidão acabara se tornando uma parte de mim, quase uma amiga teimosa que era difícil de aceitar, mas que estava sempre ali, comigo. Quem visse de fora talvez pudesse pensar que era exagero, afinal, eu colecionava colegas e pessoas com quem eu sempre poderia contar para sair ou viajar. A verdade era que quando as coisas ficavam complicadas, eu não tinha ninguém além de mim, e por isso a maioria dos meus amigos pensava que meus sumiços se davam por alguma escapada rotineira, um momento de descanso, mas eram mais do que isso, sumir era o meu único modo de sofrer em paz, sem que alguém me julgasse.
Fui até a cozinha, coloquei água para esquentar e sentei na bancada de mármore para checar meu celular. Eu não bebia café, em hipótese alguma. Me lembrava o cheiro que a minha mãe trazia do escritório todos os dias, quando eu a esperava ansiosa, torcendo para ter a atenção dela por pelo menos alguns minutos, antes que tivesse outra coisa mais importante para fazer. O cheiro de café e cigarro, mesmo ela nunca tendo fumado na vida.
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Tomei um banho e fui até meu guarda-roupa procurar o que vestir. O dia ainda estava quente apesar de já ter passado das cinco horas da tarde. Escolhi a roupa mais simples que vi pela frente, sabendo que nenhuma das minhas roupas eram exatamente o que se pode chamar de "simples". Reparei que meu cabelo havia crescido mais desde a última vez que tinha olhado diretamente para ele. Agora ele passava um pouco dos ombros e tinha alguns cachos espalhados pelas pontas, por mais que ainda fosse um cabelo ondulado. Conferi pela última vez minhas roupas no espelho, passei um dos perfumes que encontrei na prateleira, sem me importar em saber o nome, joguei o cabelo para o lado e peguei minhas chaves.
Dirigi tranquilamente até o mercadinho que havia sido muito mal recomendado, não sem motivos, pela Camila. O lugar estava caindo aos pedaços e não se notava uma alma viva para prestar atendimento. Cogitei sair e procurar outro lugar, mas sabia que a Camila ficaria desapontada se eu demorasse muito mais.
Nós tínhamos uma relação complicada, eu e a Camila. Ambas éramos ex da mesma mulher, dois relacionamentos falidos que tinham trazido experiência e dor para as duas. Não que Eloisa fosse uma pessoa ruim, ela só era extremamente envolvida com suas próprias necessidades, extremamente. Namorar com uma mulher pela primeira vez já costuma ser um desafio para mulheres, nós não sabemos muito bem o que fazer, como fazer e o que esperar de um relacionamento lésbico. A única coisa que nós tínhamos era o modelo heterossexual que nos foi ensinado desde o nascimento, um modelo que não nos cabe, foi por isso e por mais alguns pormenores que eu e Eloisa não demos certo, e eu falo em não dar certo no sentido de que depois que terminamos nunca mais conseguimos manter uma convivência. Era diferente para Camila, ela tinha sido usada como tapa buraco, logo após meu término com Eloisa, e ela sabia muito bem disso, mesmo na época. Depois que elas terminaram, dois meses após terem começado a namorar, eu e Camila nos juntamos para nos consolar mutuamente, e a nossa amizade dura até hoje. Ao contrário da Eloisa, eu preferi seguir sozinha e desde então não sinto a menor necessidade de me entregar novamente, não que eu já tenha me interessado por alguém nesse meio tempo o suficiente para pensar em relacionamento, mas sei que se eu deixasse acontecer seria um desastre.