Mas quando eu me viro, os demônios parecem ficar. Porque demônios internos não se dão bem com anjos. Eles enganam, mentem, roubam, destroem e machucam. — Julia Brennan (Inner Demons).
— Você está tremendo de frio, Srta. Bessa — Miguel se preocupou, pois os dentes da garota rangiam e sua pele estava arroxeada. Ele retirou o próprio paletó e o colocou sobre os ombros dela. Em seguida, acendeu a lareira. — Para melhorar sua hipotermia.
— Obrigada. — Um vulto de reconhecimento surgiu nela. — E me desculpe. Mesmo. E-eu... tenho isso desde pequena. É vergonhoso, eu sei, mas...
— Eu entendo — ele a sobrepôs inconscientemente. — Desculpe a indelicadeza, mas... há alguma razão?
— Sim. — Sally sussurrou mirando o fogo que já crepitava na lareira. Embora mal conhecesse aquele homem, havia algo que a impelia a se abrir e contar sobre seus demônios. — Eu era pequena... Me perdi da minha mãe ao me distrair com um cachorrinho e me deparei com um lugar triste. Estava sozinha. Com medo, me escondi em um cantinho aguardando que ela chegasse. Mas a tarde virou noite e, bem, a tempestade veio. — Suspirou. — E o pânico se juntou às descargas elétricas, à fome, ao frio... Havia um drogado ali... Me recordo apenas de vultos e... toques inoportunos e... meu olhar fixo todo o tempo apenas nos raios e no barulho dos trovões.
— Sinto muito — Miguel se comoveu, puxando-a de forma involuntária para um abraço. Havia dentro de si um sentimento inexplicável de amparo. Talvez conexão. Assustada, Sally piscou três vezes e, aos poucos, retribuiu o gesto. — Você era apenas uma criança... E...
— Não sinta. — A morena sorriu com sinceridade, afastando-o de si e se recompondo. Ela limpou uma lágrima desobediente, pois não queria ser tão fraca. — Foi a partir disso que conheci o meu futuro padrasto — revelou ao se recordar de Lourenço.
— Sério?
— Sim... Eu estava jogada e imunda no chão, então um homem bondoso apareceu e me tirou daquele meio insalubre. Consigo me lembrar do olhar amoroso dele, dizendo que tudo ia ficar bem e que procuraria meus pais. Ele me levou para casa. Além disso, decidiram não contar para todos a situação para evitar me expor. Nem mesmo minha irmã e meu melhor amigo de infância sabem. Então sempre ia me visitar para saber como eu estava, conheceu a minha mãe, se apaixonaram, e aos poucos aquele homem se tornou um pai para mim.
— Você é especial, Srta. Bessa — Miguel murmurou ao analisar o semblante suave e grato da jovem. — Consegue enxergar coisas boas em momentos ruins.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O amor que deixamos para trás
RomanceSally é uma interiorana acostumada com o cotidiano pacato e humilde. Apesar de aparentar força, sofre devido à partida de seu melhor amigo de infância, Luís Miguel, com quem costumava caçar sapos e compartilhar as cerejas que roubava do vizinho. ...