chega disso

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San

Minha cabeça dói. Demoro alguns segundos até me localizar, como todas as vezes que acordo em algum lugar que não seja meu quarto. E esse aqui é bem diferente, não só pelo tamanho, mas porque, céus, isso parece aqueles cômodos de revista de decoração. Será que ainda estou sonhando? Pego meu celular em cima da mesinha de cabeceira pra ver as notificações.

seonghwa: deixei uma chave pra você em cima da mesa da cozinha. voe como um pássaro, mas tenha cuidado e não demore muito. farei o jantar.

Percebo que estou sorrindo por causa da mensagem. Inacreditável como meu melhor amigo pode acabar soando como um tio rabugento e preocupado, ainda que seja somente dois anos mais velho que eu. E, por incrível que pareça, isso está longe de ser uma crítica. Resolvo não responder, pois estou com medo de ficar sem créditos e não conseguir me comunicar quando realmente houver necessidade. Em um país que desconheço, é óbvio que algo inesperado pode acontecer, embora eu esteja tentando me convencer do contrário.

Mas é que esse é exatamente o tipo de carinho que aquece o meu coração inteiro e sei que, em algum momento, vou querer retribuir. Do meu próprio jeito, mas vou.

O espelho me decepciona ao expor o cansaço estampado no meu rosto em forma de olheiras. Aquela viagem de avião acabou comigo de um jeito que, embora eu tenha acabado de acordar de um cochilo e esteja bem arrumado, ainda pareço ter passado uma semana inteira sem dormir. Acho que preciso mesmo de um descanso prolongado pra recuperar as noites de ansiedade que precederam o dia de hoje, mas não posso fechar meus olhos novamente e me afundar em sono profundo ainda. Não sabendo que há uma cidade inteira a ser explorada. O vento fresco invade a janela, atingindo minha pele e me atiçando, me convidando pra um passeio. Há muito tempo não me sinto assim. Ainda observando meu reflexo, ajeito meus fios negros com as pontas dos dedos na tentativa de deixar minha aparência um pouco mais apresentável.

Não é só a casa de Seonghwa que é bonita, os arredores também são. Cerejeiras decoram a paisagem, tão encantadoras. Entram em mais perfeita harmonia com a arquitetura tradicional japonesa das residências. Paro por alguns instantes ao chegar na esquina, dando uma última olhada na rua, para então abrir meu mapa em busca do parque mais próximo. Não parece tão complexo e meus passos são ligeiros. Logo chego, assistam-me. Se o caminho estiver certo, basta virar à esquerda e andar mais uma quadra pra chegar ao meu destino.

— Preciso que colabore, garoto. Não quero ter que te machucar.

As palavras proferidas por uma voz masculina e grossa paralisam meus músculos. Será que não treinei o idioma o bastante? Ou isso, ou estou sendo assaltado. Isso não é comum por aqui, ao menos não deveria ser, mas por que outro motivo falariam comigo dessa forma? Não vejo ninguém por perto e isso quer dizer que o criminoso deve estar atrás de mim. Meu coração dispara.

  — Eu... Senhor, eu não entendo — uma voz um pouco mais aguda e melódica responde em coreano fluente antes que eu possa me manifestar.

O alívio me invade. Não carrego nada de valor muito alto, apenas meu celular velho e uns trocados que pensei serem suficientes pra tomar um sorvete, mas esse é o meu primeiro dia aqui, só quero ter um passeio sossegado.

Não estou pronto para isso.  

— Acho bom você parar com esse teatro e me responder de uma vez — o homem grita, enfurecido.

Olha, quer saber? Vou apenas seguir meu rumo e fingir que não ouvi nada ou que não entendi. Nem sou obrigado a saber japonês mesmo. E dane-se que a pessoa respondeu em coreano, não tenho nada a ver com isso. Não vou olhar, não quero ver de onde essas vozes vieram, não quero saber. Sério... Não vou olhar, não vou olhar, não vou olhar. Não acredito no que os meus olhos estão vendo.

morning sun • woosanOnde histórias criam vida. Descubra agora