29 de janeiro de 2022.
Abri a porta de casa e entrei, coloquei a minha jaqueta no sofá e caminhei até a cozinha, peguei uma xicara do armário e coloquei um pouco de achocolatado, eu estava me sentindo frustrado. Escorei-me na bancada e tomei um gole, suspirei baixo e olhei pra xícara em minhas mãos.
– Porque você tá com essa cara de poucos amigos?
Minha esposa perguntou assim que entrou na cozinha e me viu escorado na bancada, levantei meu rosto pra olha-la e respirei fundo.
– Você se lembra da reunião que eu te disse que tinha hoje? – Perguntei e ela concordou com a cabeça – Então, eu acabei de chegar dela e foi horrível.
– Por quê? – Se aproximou.
– O diretor do filme queria que eu fizesse o papel de uma travesti... – Giovanna arqueou a sobrancelha, continuei – Na cabeça dele uma travesti é nada mais que um cara que gosta se vestir de mulher. E mais, ele me disse que “de dia ele vai ser o João Roberto, um homem bruto, gerente de uma empresa, mas que a noite se torna uma travesti, indo se prostituir porque gosta e se sente bem fazendo isso”, com essas palavras e tudo no masculino, Giovanna, eu tive vontade de vomitar.
Giovanna abriu a boca chocada e eu só concordei com a cabeça, ela é uma mulher cis e por isso nunca vai entender tudo o que uma pessoa trans e travesti passa, mas ela convivendo comigo, entende algumas coisas e principalmente, tem empatia por nossos corpos.
– Meu deus, Manoel, isso não pode ser sério. – Indignada, respondi um “quem me dera” – Porque isso não é falta de informação ou conhecimento, estamos em 2022, Manoel.
– Eu sei amor, mas tem gente que mesmo tendo informação na palma das mãos preferem viver na ignorância...
Ela pareceu refletir um pouco, se escorou ao meu lado e pegou a xícara da minha mão.
– Você disse alguma coisa pra ele? – Me perguntou após tomar um gole do achocolatado que até então era meu.
– Eu neguei o papel é claro e disse que ele deveria aprender mais sobre pessoas trans e travestis, que ele não pode pegar um homem barbado pra fazer esse papel porque travesti é uma identidade de gênero feminina e que elas são muito além do que ele queria representar no filme, que elas são muito além do trabalho que é imposto a elas... – Falei, Gi me escutava – É valido querer fazer algum filme, série ou música pra expor a vivencia trans e travesti, mas que deve ser além de todos os estereótipos que a nossa sociedade impõe aos nossos corpos, principalmente aos corpos das travestis. Além disso, deve saber o mínimo e esse mínimo que eu digo é saber que elas não são homens, é saber que se for se referir a alguma delas o único pronome que se deve usar é o feminino, que travesti não é uma roupa que você coloca, que pensamentos como o dele é causador de violência. – Falei num folego só – Ressaltei que trabalhar com prostituição não é uma escolha, é a única forma de sustento delas já que são negadas a empregos comuns, seja recepcionista de um hotel, garçonete, cozinheira, caixa de supermercado e todo o resto, que são poucas mulheres trans e travestis que conseguem seu espaço fora da prostituição.
Ela concordou com a cabeça enquanto eu pegava minha xícara da mão dela, levei até a boca e tomei um gole.
– Ainda disse que se ele quer falar sobre nós, porque não faz um filme sobre uma pessoa trans ou travesti conquistando tudo o que a nossa sociedade deixou claro que não é pra gente? Escola, emprego, afeto, uma vida além dos trinta e cinco anos.
– Ou uma mulher trans ou travesti preta sendo advogada, médica ou artista, conquistando seu espaço? – Gi disse, sorri pra ela.
– Ela vivendo além dos trinta e cinco anos estimado pela a sociedade, construindo um império, não sendo obrigada a usar seu corpo pra gerar seu sustento, sendo amada e respeitada como deveria ser para todas? – Falei e suspirei pesado.
– Ia ser do caralho, mas sabemos que essa não é a realidade de quase nenhuma e é isso me dói.
Giovanna disse me deixando sem ter o que dizer, só concordei com a cabeça e senti meu celular vibrar dentro do bolso, tirei ele e desbloqueei a tela, desci a barra de notificação e vi que não era nada de importante, passei os olhos pela a tela, me atentando a data.
– Mas olha a ironia, hoje é dia 29 de janeiro. – Gi já estava em frente a geladeira, me virei pra ela – Hoje é dia da visibilidade trans.
Ela me olhou e tirou um pote de dentro, veio até mim e colocou-o na bancada, abriu a tampa, revelando um pedaço de bolo de chocolate com brigadeiro e morango.
– Então hoje é o dia dos “aliados” postarem textões de que apoiam vocês, mas que em todo o resto do ano eles usam para serem transfobicos e fingirem que vocês não existem? – Ela perguntou ironicamente e pegou duas colheres.
– Justamente isso, meu amor.
Peguei uma das colheres de sua mão e tirei um pedaço de bolo de dentro do pote, levei a colher até a boca.
– Do que adianta se pagar de aliado se não é de fato? – Perguntou.
– Se eu tivesse a resposta pra essa pergunta eu te falaria, sem duvidas, amor.
Terminamos de comer o bolo sem conversar sobre nada, gostávamos e aproveitávamos bem juntos o silêncio. Ajudei minha esposa a lavar as louças e fomos para a sala, ligamos a TV no youtube e ficamos deitados no sofá por um tempo.
– Ju me disse um “feliz dia da visibilidade que não existe pra gente, cunhado...” – Li o que ela tinha me mandado.
– Chama os dois para virem jantar aqui essa semana. – Gi falou deitada sobre mim.
Concordei e digitei uma mensagem pra ela, conversamos um pouco e deixamos combinado um jantar para o final de semana. Por culpa da semana era mais complicado nos vermos sempre, mas uma vez ou outra era tranquilo.
– Manoel? – Gi me chamou, se arrumou de qualquer jeito em cima de mim pra poder me olhar. Respondi um “oi” e esperei ela continuar – Eu vejo você.
Olhei pra ela e sorri, entendendo o que ela queria dizer. Não falei nada, porque ela continuou.
– Eu vejo você desde quando a gente se conheceu e antes de eu saber da sua identidade de gênero, você tem visibilidade pra mim e eu amo você. Eu te enxergo, eu te vejo até no escuro, de qualquer jeito.
Sorri grande com o que ela disse e ela deixou um selinho em meus lábios.
– Que sorte a minha em ser visto por você e por te amar como eu amo, obrigado, Giovanna, por tudo.
Falei sincero como meu sentimento. Pra pessoa certa nós sempre seremos vistos, amados e respeitados.
“Ela tem cara de mulher
Ela tem corpo de mulher
Ela tem jeito
Tem bunda
Tem peito
E o pau de mulher!
Afinal
Ela é feita pra sangrar
Pra entrar é só cuspir
E se pagar ela dá para qualquer um
Mas só se pagar, hein! Que ela dá, viu, para qualquer um
Então eu, eu
Bato palmas para as travestis que lutam para existir
E a cada dia conquistar o seu direito de viver e brilhar
Bato palmas para as travestis que lutam para existir
E a cada dia batalhando conquistar o seu direito de
Viver brilhar e arrasar...”▪︎▪︎▪︎
Hoje, dia 29 de janeiro de 2021 é o dia da visibilidade trans, dia de nós pessoas trans e travestis dizerem mais uma vez: Nós existimos, nós resistimos e vamos lutar até o fim de nossas vidas pra sermos quem somos e sermos livres, amados e respeitados. Você, pessoa trans ou travesti que está no começo dessa luta, quero que saiba que aqui você é acolhido, apoiado e respeitado, a luta é árdua, mas ela é compensada com a felicidade de sermos livres.
A última parte em itálico é um pedaço da letra da música Mulher, Linn da Quebrada, uma travesti artista e foda pra caralho.
Você LGB, que é uma pessoa aliada a nós, não levante a nossa bandeira, não nos defendam apenas hoje, mas o ano todo. Nós resistimos sempre, mas com uma ajuda é sempre mais "fácil".
Quero indicar a série POSE, que tem várias mulheres trans e travestis no elenco, e elas são maravilhosas. A série é maravilhosa. E o filme brasileiro ALICE JUNIOR, protagonizado por uma menina trans, é um filme incrível e leve pra ver com quem se ama e ficar com o coração quentinho. Os dois tem na Netflix.
O capítulo não está tão soft, mas achei importante falar sobre nesse dia. Obrigado a quem ler!
Eric ❤
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Stranger.
Фанфик"Para Manoel, um garoto transexual de 24 anos, o amor não era algo que existiria em sua vida. Após se assumir para os pais como o homem que é e sempre foi, foi expulso. Deixou seu novo e machucado coração criar uma barreira gigante, não queria e nem...