14.

1.5K 126 8
                                    

“Não é que eu queria reviver nenhum passado...”

Durante muito tempo eu imaginei como, onde e quando eu reencontraria alguém da minha “família”. Foram longos meses imaginando, longos meses até entender que eu não precisava disso, eu não precisava deles. Eu me apeguei por muito tempo no sentimento de mágoa que eu sentia, parei quando vi que isso só me colocaria pra baixo, eu era melhor que isso.

– Manoela?

Eu ouvi esse nome mais uma vez e com a pouca coragem que me restava, virei. Me virei de cabeça baixa, meus olhos fixos no chão. Respirei o mais fundo que consegui e o encarei. Seus olhos estavam molhados e vermelhos, provavelmente esteve chorando.

– Filha? – Ele falou tentando se aproximar mais de mim, me afastei. Giovanna segurava minha mão.

– Não... – Falei, o encarando sentindo vontade de chorar – Você não tem nenhum direito em me chamar disso.

– Você ainda continua sendo minha filha... – Tentou mais uma aproximação. Ri.

– A última coisa que você disse antes de eu sair de casa, foi que você e sua mulher não tinha mais “nenhuma filha”. – Soltei da mão de Giovanna só pra fazer aspas – Você se esqueceu? Eu me lembro perfeitamente daquela noite, de como você me olhou com desprezo.

– Você estava tentando seguir o caminho do pecado... – Falou, e antes que pudesse continuar, o interrompi.

– Você podia ter poupado meu tempo, não acha? Mas já que não aconteceu, eu vou falar umas coisinhas... – Giovanna permanecia parada atrás de mim – Gi, vem aqui do meu lado, por favor – Ela fez o que eu pedi e em seguida agarrei sua mão. Olhei rapidamente pra ela, depois voltei meu olhar pra ele – Eu devo te contar que foram alguns meses pra me acostumar que você que deveria ser meu pai, me deixou sozinho em um lugar que não me quer nele. Da mesma forma que você não me quis em sua casa. Você sabia que o Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis, em todo o mundo? Pois é, eu poderia ter virado mais uma estatística e você nem ia saber. Não que você se importe, né? Pode parar com esse teatro porque eu conheço você. – Eu falava, desabafava, não queria mais chorar, ele só me olhava – Eu devo confessar que senti muita dor nos primeiros meses, tanta dor que todos os dias eu rezava pra não estar vivo no dia seguinte. Eu não só rezava como tentava, foram algumas e em todas elas eu me sentia pior, eu não merecia o amor da minha família e por não conseguir me matar. – Ri – Enquanto todas essas coisas ruins iam acontecendo, eu consegui um papel em malhação. Aceitei porque precisava de dinheiro, o que eu tinha no banco não duraria muito tempo e eu precisava continuar no meu apartamento, eu não podia sair de novo, eu não sabia se aguentaria a barra mais uma vez. Ao contrário que eu pensava, o tempo foi passando e tudo foi se ajeitando. Atuar me tirou do fundo do poço, acredita? – Eu continuava falando, sabendo que depois me arrependeria de tudo – Mesmo tudo tomando outros rumos, mesmo tudo melhorando e eu me sentindo melhor, eu me fechei completamente para as pessoas, não queria sofrer de novo, e eu estava indo bem até essa moça me apresentar um amor que até quatro dias atrás eu não conhecia. Não só um amor carnal, mas amor por quem eu sou e quem eu me tornei. Ela me acolheu em quatro dias e você nunca fez isso em 20 anos, voce consegue ver o quão cruel é isso pra uma pessoa? Eu poderia estar te contando isso enquanto a gente toma uma cerveja, eu poderia estar te apresentando ela em outra circunstância. Você poderia ter sido meu pai. Você tinha que ter sido meu pai. Você tinha que ter me acolhido, porra... Você me destruiu e eu demorei pra me remontar e colar todos os pedaços. – Eu que antes não queria chorar, me peguei segurando o choro – Depois de te dizer tudo isso, tudo o que infelizmente estava guardado em meu peito, eu vou pegar esse uber que está a mais de 5 minutos me esperando, e você não vai nunca mais vir me procurar aqui... Antes, só realçando uma coisa, eu nunca tive pai, e isso só se concretizou quando eu coloquei os pés para fora de casa.

Me virei ainda de mãos dadas com a Giovanna, começamos a andar em direção ao uber que nos esperava mas Giovanna parou de repente. Soltou minha mão e se virou, encarando ele gritou.

– Ah, e pra fim de conversa o nome dele é Manoel.

Stranger.Onde histórias criam vida. Descubra agora