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– Um ano? – Giovanna abriu a boca chocada – Passou muito rápido, Manoel.

– Muito, meu Deus... – Sorri – Tá tudo tão corrido que acredito que a gente nem ia se lembrar disso.

– Eu tenho certeza que não, a nossa rotina tá muito louca. – Ela riu docemente – Mas nossos fãs eu acho que sim, eles surtaram no dia que você pegou a certidão, lembra? Acredito que tenha sido uma das poucas vezes que você conversou com eles pelo os stories do instagram.

– Claro que eu me lembro, eu recebi tantas notificações que tive que deixar no silencioso pra conseguir viver meu dia... – Ri – Mas foi bom, eu recebi muito amor e principalmente, muito apoio.

Um ano atrás.

14h34.

– Fiz... – Olhei minha namorada  - Lê em voz alta, por favor?

Giovanna soltou o celular e me encarou curiosa. Estendi o meu celular pra ela olhar o que eu tinha feito, ela encarou a tela, passou os olhos por tudo antes de começar a ler.

– “Alguns de vocês já sabem, mas não me custa nada vir aqui falar abertamente sobre e até prefiro, de certo modo. Desde pequeno sentia que eu não era quem todos me diziam que eu era ou quem deveria ser, eu sentia que tinha alguma  diferente comigo, mas não soube o que era por muito, muito tempo. Os meus problemas começaram de verdade na puberdade, quando meu corpo foi tomando forma e começou a nascer características que não me agradavam e que até hoje me incomodam. Dos quadris até a minha voz que não engrossou como a do meu irmão. Da voz até os ombros pequenos. Dos ombros pequenos até o meu tamanho. Mas o de longe que mais me incomodou e incomoda até hoje, todos os dias da minha vida a cada segundo, sem me dar um minuto de paz, são os meus seios. Eu não os suporto, eles me doem o tempo inteiro. Eu tento fingir que eles não existem, mas eles pesam, como se fosse um claro aviso de que sim, eles ainda estão ali e eu não sei quando eu vou conseguir me livrar... Eu saí de casa tem um tempo e vivia só desde então, sem amigos e sem uma razão pra querer estar vivo, até conseguir o papel em Malhação, até conhecer pessoas maravilhosas e a mulher que hoje chamo de namorada. Ela já sabia da minha transexualidade antes mesmo de eu pensar em contar, ela atravessou meus muros e me ensinou que eu poderia me deixar ser amado e que eu poderia amar alguém na mesma intensidade. Hoje me vejo transbordando, realizando minhas vontades e meus sonhos, acreditando que eu posso muito. Há algumas horas atrás eu peguei a minha nova certidão e vocês não conseguem imaginar a sensação de liberdade que eu estou sentindo desde então. Foi como me libertar de amarras e eu não poderia estar mais feliz. Hoje mudo meu nome aqui e me apresento mais uma vez a todes vocês: me chamo Manoel Aliperti, sou um cara transexual, ator e um pouco mais feliz. Obrigado a todes vocês que continuarem aqui, peço que não falte respeito entre nós e que não use pronomes femininos. E obrigado, meu amor, Giovanna, por estar comigo nessa luta, eu te amo.” – Manoel Aliperti.

Giovanna parou de ler e continuou olhando para o celular por alguns segundos até levantar a cabeça e me olhar.

– Manoel... – Ela tentou – Eu estou literalmente sem palavras.

– Ficou ruim? – Perguntei receoso – Eu posso mudar alguma coisa e... – Giovanna me interrompeu.

– De forma alguma, amor, tá tão lindo, sensível e verdadeiro... – Ela sorriu e se aproximou – Isso que é o mais lindo em você, a sua verdade.

– Obrigado, meu amor.

– Agora posta.

– No stories? – Perguntei.

– Não, posta uma foto sua segurando sua nova certidão e coloca esse texto na legenda... – Ela falou e eu fiz uma careta – O que?

– Eu não sei se quero postar uma foto minha.

– Isso é uma coisa única, não vai te acontecer de novo e é algo incrível, você deveria fazer isso, amor. – Me deu um selinho – E outra, você tá tão lindo com essa roupa folgada, cabelo preso e essa carinha gostosa de sono.

– Então tira a foto, amor.

Ajeitei-me na cama, peguei minha certidão e fiz uma pose pra minha namorada que estava sentada na minha frente segurando o celular. Ela tirou uma, duas e três, dei um sorriso e mais um click. Puxei minha namorada pra cima de mim e peguei meu celular da sua mão, dei um beijo em sua bochecha e tirei uma foto nossa.

Atualmente...

– Eu nem acredito que estamos de folga hoje... – Giovanna falou enquanto estava literalmente em cima de mim – Estava com saudade de ficar assim com você sem ter que me preocupar em fazer alguma coisa.

– Você pretende ficar em cima de mim até que horas? – Perguntei rindo – Não que assim esteja ruim, porque com certeza não está.

– Até amanhã, eu acho. – Riu – Não está ruim mesmo?

– Não, é sempre uma delícia ter você em cima de mim... – Falei e dei uma risada baixa.

– Sem condições, Manoel, você não presta. – Falou e levantou a cabeça para me olhar.

– Eu presto sim, amor.

“Ah, se um dia eu souber voar
E no teu colo eu pousar
Será o dia mais feliz de toda a minha vida
Eu me coloquei de pé aqui
Juntei meus cacos um a um
Tive medo de seguir
Mas teu amor me encoraja.”

Dei uma risada e abracei minha namorada pela cintura. Ela riu baixinho e colou nossos lábios em um beijo calmo, iniciei um carinho leve em suas costas por debaixo de sua blusa folgada.

“De todos os amores que eu vivi
Talvez, esse seja pra ficar
Então que seja
Você veio desatar os nós
E me estampar um riso que eu
A tanto tempo não via abrir na minha cara...”

12 dias depois...

Eu tinha acabado de chegar em casa, não passava das 16h da tarde e no outro dia estaria de folga, meus planos seriam dormir, comer, fazer vários nadas na companhia da minha namorada, ela que já tinha terminado suas gravações da série para a Netflix. Giovanna tinha me dito que Henrique estaria aqui, precisava falar comigo e teria que ser pessoalmente. Ele praticamente era de casa, pois toda semana estava aqui e às vezes até dormia no quarto de hospedes.

Caminhei calmamente até a área dos fundos, onde ambos estariam conversando e tomando alguma coisa. Passei pela a porta e vi Giovanna séria, sentada no sofá em frente a minha antiga poltrona, ele estava sentado nela, mais sério ainda, ambos em silêncio.

Cumprimentei Henrique com um aperto de mão seguido a um abraço rápido, ele se sentou de novo e eu me sentei ao lado de minha namorada, dei um selinho e passei meu braço por cima de seu ombro.

– Você está bem? – Perguntei vendo a cara séria de meu irmão, ele não era assim.

– Eu acho que sim, não sei... – Respondeu – Eu quero preciso te contar uma coisa, provavelmente você não se importe e nem queira saber, mas eu, como seu irmão preciso fazer isso.

– Pode falar... – Eu já estava receoso.

– Eu vou falar de uma vez, ok?

Notei que suas mãos estavam inquietas. Giovanna pegou minha mão esquerda e apertou suavemente, como se quisesse me proteger de alguma coisa, alguma noticia devastadora, queda ou qualquer coisa.

– O nosso pai morreu.

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