23.

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– Manoel? – Giovanna me chamou, e eu percebi que já estava alguns minutos em silêncio. Respirei fundo e tentei procurar as melhores palavras.

– Você é meu irmão, Henrique... – Falei olhando pra ele – Mas como eu te disse ainda pouco, você me machucou demais e essas cicatrizes ainda estão abertas, não sei quanto tempo vai ser necessário pra elas cicatrizarem, e pode ser que nunca aconteça. Eu não consigo te aceitar na minha vida agora, sabe porque? – Ele fez que não com a cabeça – Eu quase não consigo te olhar. Me incomoda, me traz sentimentos ruins, lembranças dolorosas, entende? Eu não posso ter você na minha vida agora, mas eu posso sim te dar o meu perdão. – Terminei e vi Henrique abaixar a cabeça.

– Eu te entendo, de verdade. – Suspirou – Eu vou ir embora, mas antes você pode me ensinar algumas coisas? Tipo... Sobre você...

– Pra começar, eu não sou lésbica. – Falei e ele arqueou a sobrancelha em confusão, dei uma risadinha – Eu não me identifico como mulher, e por isso não tem como eu ser lésbica. Eu me identifico como um rapaz.

– Explica pra ele o que é identidade de gênero e sexualidade, e que os dois não tem nada a ver, amor. – Giovanna falou, a olhei e sorri. É muito o meu orgulho.

– Obrigado. – Sorri pra ela e voltei encarar meu irmão – Identidade de gênero é como você se identifica, homem, mulher, os dois, ou nenhum. Sexualidade é por quem você sente tesão. Então com isso os dois são coisas diferentes. – Sorri – Eu sou um rapaz transexual, Henrique. Quer dizer que embora eu tenha corpo dito feminino, eu me vejo, sinto e principalmente, sou um homem.

– E você é?

– Bissexual.

– Você é um... Um homem transexual e bissexual?

– Sim, mas não gosto de homens cis. – Falei e Henrique de novo levantou a sobrancelha em confusão. Dei um sorriso entendendo que não expliquei essa parte – Tá, cisgênero... A Gi aqui do meu lado é uma menina cis, e você também é um cara cis. Quer dizer que, você nasceu homem e com o decorrer dos anos foi se identificando como homem, e vice-versa. Entendeu?

– Então... – Parou pra pensar um pouco – Eu sou um cara cis e hétero? – Perguntou.

– Você gosta de meninas?
– Sim... – Sorriu – Eu tenho uma namorada, inclusive.

– Então você é isso aí, um homem cis é hétero. – Dei mais um sorriso, era bom conversar sobre isso com quem me causou dor no passado, mas melhor que conversar, era ver que a pessoa estava fazendo de tudo pra entender – Mas, como ela chama? – Perguntei.

– Juliana.

– Vocês estão juntos a muito tempo? – Gi perguntou, curiosa como sempre.

– A gente se conheceu faz quase um ano, mas só começamos a namorar tem dois meses.

– Então enrolar vem de família, Manoel? – Giovanna falou, debochando.

– Enrolar? – Henrique perguntou e logo depois riu, entendendo do que se tratava – Você tá enrolando pra pedir ela em namoro, cara?

– Não... – Revirei os olhos e olhei pra ela, que sorria – Eu não tô enrolando nada.

– Bom... – Ele falou – Eu tenho que ir, prometi passar na casa dela.

– Foi um prazer, Henrique. – Giovanna se levantou e o abraçou.

Me levantei e o acompanhei até a porta.

– Obrigado, Manoel.. – Falou, antes de apertar a minha mão e sair caminhando até o elevador.

Fechei a porta, passei a chave e voltei pra Giovanna que me aguardava atenta. Me sentei na cadeira que ele estava sentado e olhei pra Giovanna.

– O que você achou? – Perguntei.

– Eu achei que foi tudo bem, sabe? Gostei de como você foi sincero com ele, e como ele tá disposto a te mostrar que mudou e a aprender.

– Você acha que ele também foi sincero?

– Eu senti sinceridade nas palavras dele, mas não posso dizer que 100% porque não o conheço, mas, vamos esperar e ver no que dá. – Sorriu – Tá se sentindo melhor?

– Sim, e tô um pouco chocado por minha mãe ter enfim se separado do embuste do meu pai.

– Você tá pensando em ir vê-la?

– Não... – Ri – Um passo de cada vez.

Giovanna acenou com a cabeça e se deitou no sofá, permanecendo com o seu olhar sobre mim. Me levantei da cadeira e me deitei no mínimo espaço que tinha no sofá, obrigando ela colar seu corpo sobre o meu e me abraçar.

“Tudo vale a pena quando você vêm
Eu conto os dias e as horas só pra te encontrar
Você já sabe, é você que tem
Aquele abraço que me leva pra qualquer lugar
Meu dia a dia cê domina bem
Gasto meu tempo só pensando em como te agradar
Já deixei claro, é você quem tem
Aquele abraço que me leva pra qualquer lugar
Talvez eu esteja perdendo a cabeça
E você faz questão de me tirar do chão
Talvez você seja tudo que faltava
Tudo que eu até então pensava ser em vão...”

– Giovanna? – A gritei, ouvi um o que de dentro do banheiro – Você quer que sabor de sorvete? – Gritei mais uma vez, ouvindo um entra aqui porque não tô te ouvindo direito, respirei fundo e abri a porta, coloquei só a cabeça pra dentro – Que sabor de sorvete você quer?

– Mas já não tem sorvete aí? – Perguntou, enquanto passava o sabonete pelo seu corpo.

– Tem aquele de hoje de manhã.

– Então não precisa.

– Aquele tá acabando, amor. – Falei e entrei dentro do banheiro – Escolhe logo pra eu ir lá comprar.

– Mousse de maracujá ou flocos.

– Mousse de maracujá? – Dei um sorriso – Era o preferido da minha vó, sabia?

Giovanna desligou o chuveiro, puxou a toalha que estava ao lado, e se enrolou nela. Saiu do box e me deu um selinho.

– Ela tinha um gosto do caralho então, viu? – Sorriu, a olhei e sorri também, deixando uma lembrança tomar conta de mim.

Já passava das 16h de uma quinta, eu estava deitado no sofá passando o catálogo de filmes da Netflix sem conseguir escolher nenhum. O tédio estava me consumindo. Bufei e desliguei a TV. Não ia dormir, não ia sair com nenhum amigo e também não ia ficar em casa vendo Netflix. Me levantei do sofá, fui pro meu quarto e peguei minha carteira com dinheiro,  e documentos. Sai de casa quase as 17h, e comecei a fazer o caminho que eu tanto conhecia.

Na minha rota tinha um supermercado, passei por ele e comprei um pote de sorvete de mousse de maracujá e uma barra de chocolate meio amargo. Paguei as coisas e segui meu rumo, em menos de 15 minutos eu estava entrando pelo portão de casa que eu vivi grande parte da minha infância e adolescência, 90% das minhas lembranças felizes estavam aqui.

Abri a porta com cuidado, olhei a sala que estava vazia, fechei a porta e passei pelo corredor que dava pra cozinha. E a encontrei lá, em frente à pia. Sorri e deixei as coisas na mesa, ela ainda não tinha me escutado.

– Vó? – A chamei. Ela virou em minha direção sorrindo. Eu nunca me esqueceria dos sorrisos que ela dava ao me ver.

– Meu neto. – Abriu os braços, e eu fui  até ela, a abracei com mais força do que o normal. Talvez eu soubesse que seria a última vez – Eu sabia que você viria, acabei de fazer aquele suco de manga que você adora.

– Adoro mesmo. – Sorri – Eu trouxe duas coisas que você gosta.

– O que? – Foi até a mesa, puxou uma cadeira e se sentou.

– Sorvete de mousse de maracujá... – Fui dizendo enquanto tirava da sacola – E, uma barra de chocolate meio amargo. Você sabe o que sorvete e chocolate pede, né?

– O que?

– Filme. – Continuei antes que ela pudesse falar – Não, e não vai ser de terror, eu deixo você escolher.

– Titanic.

– A gente já assistiu 467829 vezes, vó.

– Você disse que ia deixar eu escolher, então eu já escolhi. – Se levantou e foi em direção ao armário, pegou duas colheres – Titanic.

Revirei os olhos aceitando sua escolha. Fomos pra sala, coloquei o filme que ela tinha o dvd original, inclusive, presente meu. Coloquei o filme e omeçamos a comer o sorvete, enquanto assistimos. Fui embora logo após o filme, prometendo que voltaria domingo...

Pisquei o olho algumas vezes e vi Giovanna ainda de toalha na minha frente.

– Meu Deus... – Falou – Tô te chamando faz 3 minutos.

– Desculpa... – Dei um sorriso amarelo – Eu me lembrei da minha vó.

– E como foi?

– Eu fui pra casa dela, levei um pote de sorvete de mousse de maracujá e uma barra de chocolate, vimos Titanic pela 66342 vez e depois eu fui embora prometendo que voltaria no dia seguinte.

– E você foi lá?

– Não.

– Porque?

– Foi no dia que eu saí de casa... Eu acordei, eles tinham saído e iam voltar as 19h, fiquei em casa pra ficar vendo TV e pra fazer a janta. Eu ia pra lá no sábado, passar o dia todo mas não aconteceu, e alguns dias depois ela acabou falecendo.

– Sinto muito, Manoel... – Passou a mão no meu braço.

– Tá tudo bem, Gi. – Sorri – São lembranças boas da minha vó. – Ela assentiu e me deu um selinho. Saímos do banheiro, ela foi vestir roupa e eu pra comprar o sorvete.

Aprovei o caminho que tinha até o supermercado pra pensar em como a minha vó fazia falta. Em como eu sentia saudade do abraço quente que ela me dava toda vez que a gente se via. Em como eu sentia falta das broncas enquanto eu aprendia a cozinhar, dos conselhos sobre a vida e de todos os sorrisos que ela me dava. Esse um ano teria sido diferente se ela não tivesse partido, e pensar nisso dói, sentir falta dela dói. Mas a dor faz parte da vida, eu sei bem.

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Oi, rs. Um presente de Natal pra vocês.
Até depois, boa véspera.

Manoel enfim perdoou Henrique, não consegue tê-lo em sua vida, mas como disse, é um passo de cada vez. E, eu espero que tenha ficado claro mais uma vez a diferença de Identidade de Gênero a Orientação sexual, e todo o resto que eu tentei explicar.

Os flashbacks são em itálico.
Música do capítulo: Talvez - Carol Biazin: https://youtu.be/rA4iMBHiuBM

Ah, eu gosto bastante de por os momentos do Manoel com a vó dele, espero que gostem também.
Eu volto em 1964... Quer dizer, 2019.
Uma boa virada de ano pra todos e um começo de ano já com resistência e fé.
Beijinhos!

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