Eu podia escutar a chuva torrencial lá fora. Ao longe, o som ainda continuava a açoitar as janelas da casa. Abri os olhos lentamente, e mesmo com a visão enuviada, ainda consegui reconhecer o quarto de Lieff. Meu corpo estava estendido no chão, e quando tentei levantar, uma forte dor na cabeça me deixou tonta o suficiente para me deixar onde estava. Pequenos flashes do que aconteceu foram vindo aos poucos, e quanto mais rapidamente chegavam, mais nervosa me deixavam. Comecei a chorar baixinho, e então logo alguns soluços escaparam dos meus lábios. Eu estava apavorada.
Alguns minutos que logo se tornaram horas foram passando, e quando tive a certeza que estava sozinha no quarto, consegui sentar apesar da dor latejante que se alastrava em minha cabeça. Pisquei diversas vezes muito rapidamente para afastar a tontura que me fazia ver dobrado e consegui ficar de pé me apoiando na cômoda ao lado. Por alguns instantes achei que estivesse sob o efeito de algum sedativo, pois a dormência em meu corpo era tamanha que eu não conseguia sentir as próprias pernas. A cada passo que tentava dar, meu corpo parecia ficar cada vez mais pesado e senti que poderia desmaiar a qualquer instante.
Meu coração deu um salto quando avistei Lieff adormecido em sua cama. Algo dentro de mim se contraiu e minhas pernas tremeram. Eu sabia que deveria sair dali se quisesse evitar que Lieff fizesse algo pior comigo, como aconteceu com Amanda e seu irmão, mas parte de mim sabia que aquele não era Lieff, que ele estava aprisionado em seu próprio tormento. Engoli em seco e tentei não pensar no que poderia acontecer de pior, eu precisava ajudá-lo e não o deixaria sozinho. Primeiro observei o que estava ao seu redor que poderia usar para me ferir, mas lembrei que ele usou suas próprias mãos para me golpear na cabeça, e aquilo foi o suficiente para quase me matar.
Olhei para a escrivaninha e notei que a cartela de comprimidos estava retorcida, como se ele em seu acesso de raiva tivesse tentado destruí-la. Alguns comprimidos estavam no chão, o que me fez reforçar a teoria de que ele tivesse me dado algo para ficar desacordada. Meu corpo tremeu ao pensar que ele poderia ter feito algo muito pior enquanto eu estava desacordada, mas minhas roupas estavam intactas e o único desconforto estava em minha garganta. Imaginar as mãos de Lieff se fechando em volta do meu pescoço era repugnante, porém aquilo realmente aconteceu. Caminhei com calma até onde ele estava e retirei alguns livros da cama, assim como um álbum de fotografias e mais algumas das correspondências que fazia com o pai.
Ainda com uma curiosidade fervendo dentro de mim, peguei uma das cartas e passei o olho rapidamente na tentativa de descobrir algo novo sobre meu melhor amigo que parecia tão distante agora. A carta não tinha data, mas pelo conteúdo parecia ser bem recente e pelo visto não chegou a ser enviada. Lieff se remexeu na cama, me fazendo dar alguns passos para trás, então rapidamente comecei a ler os primeiros trechos...
Pai, hoje me sinto tão estranho.
É como se eu estivesse trancafiado em um caixão de ferro, onde meus gritos e lamentos não passam de um simples vácuo abafado. Não consigo lembrar dos dias que pareciam normais, do sabor dos alimentos ou até mesmo distinguir as horas e os dias. Estou ficando louco?Nem mesmo os rostos consigo reconhecer, os nomes e as pessoas que gosto, eu tenho mesmo alguém que possa me ajudar? Sinto que estou perdido, nem mesmo sei onde estou. Há dias em que não consigo falar, as palavras sumiram de minha boca como se nunca tivessem entrado, minha língua não se move e permanece dormente... já não sei como se fala, minha voz não existe mais. Por favor, meu pai, por misericórdia... o que devo fazer? Como estou conseguindo escrever esta carta para você? Meus pensamentos não me deixam em paz, eles insistem em me arrastar para um mar de insanidade da qual sei que estou me afundando cada vez mais. Já não lembro mais de nada, dos dias que se passam recordo apenas que estou preso. Minha liberdade foi tomada, assim como minha alma, por alguém que estava dentro de mim o tempo inteiro. Como posso fugir de mim mesmo? Fui trancafiado, e agora meu espírito está doente e logo meu corpo também suncumbirá as falésias da loucura. Os dias parecem longos e infinitos, apesar de torturante, não há um dia sequer que eu não tenha lutado para achar uma saída do tormento infernal que é a minha mente. Em alguns momentos de raros picos de sanidade, percebi o que tenho que fazer! Minha liberdade finalmente está ficando próxima, e ela só será conquistada com a morte de um de nós, e eu escolho a minha! Não quero dividir meu corpo com um parasita que me deixa doente e louco. Ele tomou conta de mim, me fez esquecer de tudo aquilo que eu poderia resgatar para lembrar de quem eu fui um dia. Escrevo para meu pai, eu sei que escrevo para você, e por mil perdões, já não recordo de seu nome.... não recordo de meu próprio nome. Como poderei enviar esta carta? Não a enviarei, não há como. Maldito parasita, eu o levarei comigo para o inferno! Me perdoe pai, a saída do paraíso sombrio também é cheia de escuridão.
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SOMBRIO
VampireSora Bloom ainda carrega a culpa nos olhos. Reclusa em sua casa que um dia já foi um grande castelo, ela tenta viver longe de todos após o fatídico dia em que sua família a deixou. Quando as tempestades chegam em Blizzard, algo estranho surge entre...