o8| Sede

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O crepúsculo se fora tão rápido quanto viera

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O crepúsculo se fora tão rápido quanto viera. Fracos feixes de luz já irrompiam adentro da floresta fria. A tempestade cessara. Levantei do parapeito, Lili ainda jazia adormecida em seu leito. A luz já não me afetava mais quanto antes, acho que o sangue havia tratado disso, mas precisaria me alimentar em breve. Não estava sentindo necessidade no momento, me perguntei onde conseguiria mais sangue, teria que me virar sozinho. Depender de Lili era um erro, teria que sair para caçar.

Andei até a pequena porta e sai do aposento, senti a presença dos outros dois no salão ao lado. Fechei a porta com cuidado, ela não possuía tranca como outrora. Uma forte corrente de ar bateu em meu rosto, eu sentiria frio se já não estivesse morto. Lili me dera um tipo de calça para vestir e uma blusa que mais parecia um vestido largo. Fiquei estranho naquelas roupas. Ela dissera que era para me manter aquecido. Indaguei se eles sentiriam minha falta enquanto eu caçava, mas ainda não amanhecera completamente, e eles pareciam estar exaustos. Um crucifixo pregado na parede me fez recuar como um lobo acuado. Não gostei daquela sensação estranha, era como se aquilo fosse feito para me repelir.

Desci a escadaria rapidamente, me surpreendendo com tamanha velocidade e destreza. Consegui sair da casa sem que ninguém me visse e adentrei na floresta. Conhecia aquele lugar de cor, nem mesmo o tempo me fizera esquecer. Ainda chovia um pouco, pequenos flocos de neve começavam a cair. Algo dentro de mim despertou quando senti a presença de duas pessoas na floresta, e estavam vivas. Comecei a salivar apenas ao relembrar o gosto metalizado, desejei sangue humano, aquela seria minha chance.

Corri o mais rápido que pude. Estava livre após tantos anos. As árvores a minha volta transformaram-se em vultos quando comecei a saltar sobre as rochas cobertas de gelo. O calor foi aumentando à medida que eu me aproximava e captei a presença de alguns animais ao redor, mas eram animais de inverno e eu precisava de sangue quente. Ao ficar mais próximo da clareira avistei duas meninas deslizando no gelo, aquilo me lembrou Lya. Ela certamente não aprovaria o que eu iria fazer, mas ela estava morta assim como os outros. As meninas estavam sozinhas, elas soltavam grandes gargalhadas que ecoavam em toda a floresta.

- Vem Luscka! – gritou a menor delas. – Vem patinar comigo.

- Olha Lysie, está muito frio, papai vai acordar logo e descobrir que saímos sozinhas para vir até aqui – gemeu a morena.

- Não se voltarmos a tempo, sua bobinha. Vem patinar comigo, não vamos ter essa oportunidade de novo. Vamos nos mudar amanhã. Para onde estamos indo não tem lagos de gelo, apenas sol e praias.

- Ah, tudo bem.

As observei por alguns instantes, elas rodopiavam sobre o lago com botas estranhas, que faziam marcas no gelo. Aquela era uma coisa bela de se ver, elas riam alegremente e dançavam como as dançarinas da rainha. Recordei de Prudence e Lírica, eram belas garotas e viviam com sorrisos no rosto, me perguntei o que teria acontecido com elas naquela noite. Tentei afastar esses pensamentos e me concentrar na caça. Uma das meninas caiu, a menor delas.

- Ai! – gritou. – Acho que torci o pé, me ajuda Luscka!

- Ah meu Deus, papai vai nos matar. Eu não devia ter vindo aqui, que droga!

Aquela seria minha oportunidade, uma delas estava indefesa e seria essa a primeira. Sai detrás da grande árvore que me cobria. As duas garotas estavam ajoelhadas no gelo, tentando avaliar a situação. Fiquei mais próximo, a menor delas me avistou e parou de chorar.

- Olha, temos ajuda – pigarreou, apontando para mim. A outra correu os olhos sobre mim, primeiro avaliando. Ela olhou para os meus pés, que estavam descalços.

- Por favor, nos ajude. Minha irmã torceu o pé e não consegue se erguer. Precisamos ir para casa.

Cheguei perto o suficiente das duas. Elas me olhavam aguardando alguma resposta, que certamente não viria. Eu me agachei e fiquei até a altura da menina morena, ela parecia saber que algo ruim ia acontecer. Eu me virei para a que estava machucada. Ela ainda gemia no chão. Estendi meu braço até ela e pus a mão em seu rosto.

- Ainda sente dor? – perguntei, ela assentiu em silencio.

- Não se preocupe. Isso vai acabar logo.

Aconteceu muito rápido. Apoiei meu outro braço no rosto dela e girei seu pescoço, ela caiu com um forte baque no gelo. A menina morena deu um grito ensurdecedor, cambaleando para trás em uma patética tentativa de fuga. Ela ainda permanecia no chão, suas feições tomaram uma expressão de horror quando ela me viu abrir um sorriso.

- O que você fez com ela? – gritou. – Me deixa em paz!

Ela levantou, tentando correr com dificuldade. Suas botas estranhas estavam dificultando sua fuga. Cheguei ao seu encontro com apenas alguns passos, ela chorava e gritava. Segurei seus longos cabelos negros e os puxei para trás, jogando sua cabeça contra o gelo. Por um instante pensei que o gelo havia rachado, mas uma poça de sangue ao redor da cabeça dela me provara o contrário. Passei a mão na poça de sangue que se alastrava sob o lago congelado, estava quente e vermelho vivo. Levei os dedos à boca e senti o sabor do que era ser vivo. A menina ainda agonizava ao meu lado, seus olhos estavam vidrados para o céu.

- Eu não vou deixar você partir sem sentir o verdadeiro sabor da vida – falei, ela olhou para mim e tentou soltar um último pedido de misericórdia.

- Por-p-por favor...

- Shh – chiei, passando meus dedos ensanguentados sobre seus lábios.

Ela começava a ficar pálida, já tinha perdido bastante sangue, e eu também. Apoiei o corpo dela em meu colo e peguei seu braço, mordendo o pulso. O sangue entrou em minha boca a golfadas, aquilo era revigorante. Depois de sugar tudo, a menina já jazia inerte no chão. Caminhei em direção à outra garota, que já começava a ficar azul por conta do frio. Puxei seu braço e todo o corpo veio para cima, agarrei sua cintura e enterrei o rosto em seu pescoço. O sangue ainda estava quente, mas não tão vivo quanto o da outra. Larguei o corpo sem vida e olhei para cima, o sol já começava a clarear alguns pontos da floresta.

Observei as meninas, os sorrisos de seus rostos haviam desaparecido junto com a cor de suas bochechas. Pensei no que aconteceria com seus corpos se ficassem ali, não me importei com isso. Andei de volta para a casa, esperava encontrar todos ainda dormindo em seus leitos. Lili não poderia saber o que eu havia feito. O sangue fez meu corpo crescer um pouco, me senti mais forte fisicamente. Meus reflexos também ficaram melhores, agora conseguia identificar calor humano a uma distância maior. Senti cheiro de sangue impregnado em mim, mesmo depois de ter limpado o rosto. Minha blusa estava úmida, não era possível notar o sangue nela porque também era vermelha. Mas era possível sentir o cheiro forte e metalizado.

Levantei a blusa pelos braços e a joguei fora, me certifiquei de que não havia manchas avermelhadas em mim. Estava tudo pronto para regressar, agora acho que poderia ficar dias sem precisar de sangue, evitando matar outras pessoas. Não que eu me importasse com elas. Cheguei até a frente da grande casa que outrora fora a enorme guarita do rei. Minha casa. Ela estava bem menor agora, sem os grandes portões de madeira e as torres imponentes. Olhei pela janela para certificar de que ninguém havia acordado. Entrei porta adentro e os ruídos na nevasca cessaram, tornando a casa tão silenciosa quanto a cripta.

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