43| Memórias Mortas

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     "Doninhas sempre apareciam quando o sol finalmente surgia no céu e mandava toda a neve e o frio embora. Ela odiava quando a primavera chegava, pois era uma garota de inverno. Nascera na pior tempestade de todos os tempos, a mais congelante e duradoura. A alvorada entrava em ascensão, manchando o vasto céu ainda tomado por estrelas. Nuvens alaranjadas mesclavam-se com a pouca névoa matinal que ainda restava nos morros cobertos de neve. Ela acordara mais cedo para aproveitar a pouca neve que ainda escondia-se nos lugares mais frios. Casacos de lã não eram úteis para ela, porque o frio residia em seu coração. Saiu sorrateiramente de casa com a roupa de dormir, um vestido branco simples feito de algodão e seda.

Ela cruzou o vale tomado pela neblina. As sequoias agora exibiam as folhas de seus enormes galhos, o inverno estava definitivamente acabado. As raízes estavam descongeladas, pelo menos isso era um ponto positivo, pois isso facilitaria sua escalada. A garota riu com amargura quando recordou que sua última escalada resultara em uma queda feia, as duas pernas quebradas. Mas não se importou, pois havia se recuperado em menos de três dias. Bruxa. Feiticeira. Herege. Foi assim que a chamaram quando viram sua incrível recuperação, fora condenada à morte. Merecia ser queimada na fogueira, mas era a filha do Rei Arthur e não poderia ser tocada. Ela ria debochadamente das velhas ranzinzas que tentavam a todo custo vê-la morta.

Ela deitou sobre o chão gelado e sorriu para as estrelas que banhavam o céu. O cheiro de tortas assadas chegou rápido demais ao seu nariz, sentiu a boca salivar ao imaginar-se comendo uma torta de maçã, a sua favorita. Era assim em todas as manhãs em Statera, o estalajadeiro sempre assava suas tortas antes do raiar do dia. E como sempre, ela acordava com o delicioso aroma. O seu aniversário havia passado e com ele o rigoroso inverno da estação, as últimas serpentes do gelo já começavam a refugiar-se dentro de seus ninhos subterrâneos, ela só as veria novamente em seu próximo aniversário, era quando o inverno chegava. Eram criaturas adoráveis quando não eram tocadas por mãos aquecidas, eram animais de inverno.

Ouviu o som de folhas sendo pisadas. Alguém estava vindo ao seu encontro. Mas ela sabia quem era. Ele sempre vinha todas as manhãs, mesmo quando o tempo estava tão frio a ponto de congelar. Era o seu melhor amigo, amigo das serpentes e ladrão de tortas. Ela sentiu a boca salivar mais uma vez com a expectativa de uma torta vindo ao seu encontro. Continuou deitada e esperou que ele se aproximasse.

- Pie... - ela franziu a testa ao ouvir aquele apelido estranho, ainda estava se acostumando com ele. - Eu consegui a sua favorita, também trouxe uma de limão. Estão quentinhas.

Ela sorriu, ainda fitando as estrelas. Mal acreditou na sorte que tinha. Duas tortas!

- Você é o melhor - a garota sussurrou.

- Eu sei - o garoto sentou-se ao lado dela. - Você não vive sem mim... - ele estendeu duas tortas grandes sobre uma toalha de lã grossa. - Nem elas.

- Ah é? E por que você acha que não? - ela enfiou o dedo nas duas tortas, vendo o delicioso vapor subir até seu rosto.

- Por que se eu não estiver aqui você não terá tortas. Está proibida de comê-las por sua instrutora de casamento, não pode engordar.

- Isso é verdade, mas você me conhece. Eu nunca sigo as regras - ela arrancou um pedaço da torta e mordeu.

Ele parou de falar para observá-la. Analisou seus longos cabelos negros, a franja que descia até as sobrancelhas levemente arqueadas. Mesmo com o fim do rigoroso inverno, ele ainda sentia muito frio. Mas não ela, e era isso que o mais fascinava na garota, até parecia uma rainha. Era tão jovem e bela, em seus quinze anos Shaya já havia conquistado a atenção de todos os rapazes da vila. Mas não apenas por ser a filha do Rei, mas por ser misteriosa e bem durona quando queria. Fora numa grande surra que Micah a conhecera, tentando roubar uma torta da enorme cozinha do castelo. Desde então se tornaram amigos inseparáveis. Shaya lambeu os dedos sujos de creme de maçã e notou que o garoto a observava.

- Micah... - ela limpou a garganta. - O inverno está indo embora, eu queria que aqui fosse sempre frio.

Ele despertou de seu devaneio.

- Bem, eu sei que queria. Mas nada dura para sempre, nem mesmo o inverno - Micah arrancou o caule de uma flor e o colocou na boca.

- Farei o inverno durar para sempre - Shaya pegou mais um pedaço de torta. - Farei a primavera ir embora e irei governar Statera... e você pode ser meu Rei se quiser.

Ele engasgou com a própria saliva. Aquela garota não parecia ser Shaya, ela nunca diria algo com aquilo.

- Pie...

- Estou brincando é claro - ela sorriu para ele, divertindo-se com sua careta de desânimo. - Você será meu conselheiro.

- Pie...

- Pare de me chamar assim, isso soa muito esquisito - bufou.

- Não, é um apelido legal - ele grunhiu. - Mas quero que me responda algo.

Ela cruzou os braços e olhou para a enorme lua que ainda pairava no céu. Era estranho ver o mesmo céu partilhar de dois astros que anunciavam o começo e o fim do dia. As estrelas já começavam a sumir, dando espaço aos finos raios de sol que se permeava entre as nuvens.

- Pode falar garoto.

- Você vai mesmo casar com o rei da lama? - ele falou amargamente.

- Você está falando de Barlon? - Shaya riu debochadamente do ciúme explicito do amigo. - É claro que não.

- Bem, e como você pretende enfrentar sua mãe? - Micah esticou suas longas pernas e as cruzou, sentindo-se mais aliviado com a resposta de Shaya.

- Não irei desafiar ninguém - ela mordeu o seu terceiro pedaço de torta. - Vou matá-lo.

- O que? Você não tem coragem...

- É claro que tenho - ela odiava quem a chamasse de covarde. - E você vai me ajudar.

- Não venha com essa, odeio fazer mal a qualquer ser vivo, isso é repugnante.

- Você é muito bonzinho - Shaya sorriu tristemente para o amigo.

Ela devorou uma torta inteira, depois a metade de outra com o amigo. Logo se sentiu cheia e assistiu tristemente o último dia de inverno ir embora. Torturou-se ao imaginar os pântanos da floresta coberto de flores a pássaros cantando, ela gostava do silêncio.

- Está vendo agora por que dei esse apelido para você? - Micah jogou um punhado de neve no rosto de Shaya.

Ela sorriu e limpou a neve do rosto.

- Ainda não descobri o motivo...

- Nossa, você é mesmo muito lenta - ele jogou outra bola de neve, mas Shaya curvou-se para o chão.

- Então me diga espantalho - ela aguardou deitada no chão e gargalhou ao ver o amigo ficar vermelho de raiva ao ouvir aquele apelido infame.

- Você sabe que Pie significa torta não é? Não me chame assim! Pensei que odiasse tudo o que Solária diz!

- Não odeio minha irmã, ela só diz algumas coisas erradas às vezes. Bem... me chama de Pie porque como várias tortas?

- Exatamente - bufou Micah.

Marvolo cabeça de ovo! Marvolo cara de corvo!

Marvolo cabeça de ovo! Marvolo cara de corvo!

Eles ouviram gritos de uma turma de garotas que importunarem a filha do pobre lenhador, foram até a ponta do pico para ver o que estava acontecendo. Solária era a líder do bando, jogava pingos de água fervente na pobre Marvolo. A garota jazia encolhida sobre as rodas da carroça desgastada. Jared, seu pai, nada podia fazer para proteger a filha porque a herdeira do Rei era quem comandava. Shaya e Micah entreolharam-se e sorriram, sabiam o que fazer."

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