14. Queria que pudesse ver o que eu vejo

29 8 1
                                    

- Qual o número? - Heron perguntou assim que entramos na Rua Kingley.
- 85, uma casa azul clara com varanda e gramado.

Ele pedalou um pouco mais até frear a bicicleta a beira do meio fio de frente pra minha casa e apoiou seu pé direito no chão.

- Está entregue.

Desci da bicicleta em um salto me pondo de pé ao lado do francês. Ainda chovia muito e estávamos no nosso estado mais deplorável no quesito aparência, mas eu mal lembrava disso.

- Quer entrar pra esperar a chuva passar? - tentei ser educado, não sabia muito o que dizer.
- Adoraria, mas moro logo na rua de trás e digamos que não tem como eu ficar mais molhado - ele riu.
- Então eu... vou entrar, obrigado pela carona.

Ia me virando para correr até a varanda da porta de entrada mas Heron ergueu a mão suavemente como se pedisse calma. Parei de imediato.

- Adrien eu só, queria dizer que naquele dia nos armários a mãe da Meredith, ela não é nada minha, muito menos minha... sogra... como a Meredith falou - ele disse pausadamente.

Eu o encarei, as gotas de chuva correndo por seu rosto cheio de pintas, deslizando por suas bochechas e pingando de seu queixo e mandíbulas. Me sentia em um daqueles filmes românticos dos anos 2000 ou alguma adaptação de um livro do Nicholas Sparks. Mas diferente do pedido de casamento, de namoro ou da reconciliação memorável com um beijo apaixonado, falávamos sobre a mentira - ou omissão - de Meredith Rose Saint-Jones que todos do colégio acreditavam e que eu por sorte, e uma pitada de ousadia, sabia que não era verdade.
Ele parecia meio desconfortável em falar sobre isso, eu não sabia qual era realmente a relação dos dois mas senti uma certa felicidade por ele me dizer, não só pra Queen, que não havia nada como todos pensam. Queria acreditar que ele confiava em mim o suficiente pra dar detalhes de algo particular.

- Imaginei que você tivesse entendido errado naquele dia e isso estava na minha cabeça, já não basta a escola inteira.
- Eu estou bem - sorri singelamente - de verdade, eu não me importo.

Agora não, mas naquele dia eu me importei. Entretanto, ele não precisava saber dessa parte.
Queria perguntar o porque de ele não ter negado, queria lhe fazer milhares de perguntas, mas me calei. Me bastava ele ter a delicadeza de não esconder a verdade de mim, o que eu acho e/ou suponho já não importa tanto agora.
Heron sorriu aliviado e tirou os cabelos molhados da testa que começavam a cobrir seus olhos.

- Aah... melhor irmos né? Se ficarmos mais tempo por aqui vamos pegar um bom resfriado - ele riu descontraidamente.
- É mesmo - sorri - até amanhã, então - acenei e corri para a varanda.

Quando cheguei a porta, ouvi meu nome ser chamado. Meu coração saltou.

- Adrien! - Heron gritou ainda parado na chuva no mesmo lugar, o olhei novamente, dessa vez a chuva não embaçava meus olhos
- Obrigado, novamente.

Antes que eu pudesse responder - ou até mesmo pensar em como - Heron subiu novamente na bicicleta e saiu em disparada rua a baixo, deslizando pelo asfalto molhado na primeira curva em direção a sua casa. Ainda fiquei alguns segundos parado olhando a rua com meus pés dançando dentro do all star encharcado.

Se Heron Roux Perrin Hayes ainda não havia fisgado totalmente o meu coração, hoje ele o fez.

Entrei em casa com os pés descalços e o celular - graças aos céus à prova d'agua - nas mãos. Eu estava em casa, ensopado de chuva e com um coração ardendo. Meu corpo podia estar gelado o quanto fosse, mas meu coração fervia como não fervia há muito tempo. Eu poderia derreter de amores há qualquer momento.
Saí um pouco dos meus devaneios quando notei que as luzes de casa, a tv e tudo que costuma estar ligado durante o dia estava desligado e não havia nenhum sinal de Skye. Subi ao segundo andar e também não havia ninguém. Tentei não me preocupar, não haviam ligações perdidas então ela deve ter ido em algum lugar perto como o mercado ou a farmácia.
Aproveitei o tempo sozinho pra tomar um banho quente ao som da minha playlist favorita, as músicas nunca soaram tão doces aos meus ouvidos. Os sorrisos bobos sem sentido, a vontade de rir o tempo inteiro e o bom humor só de lembrar de nós cantando Beatles na chuva parecia coisa de sonho. Agora, ter a sensação de estar apaixonado era simplesmente deliciosa, eu tinha vontade de gritar.
Depois do banho, instalado em meu pijama e meias coloridas, resolvi voltar pra sala e esperar por Skye lá, enquanto descia as escadas ouvi o barulho da porta sendo aberta e a voz de minha mãe.

- Cheguei!

Skye segurava algumas sacolas de mercado, os ombros de seu kimono floral e seus óculos estavam cobertos por respingos d'água. A ajudei com as compras.

- Imaginei que você teria ido ao mercado - disse enquanto colocava tudo em cima da mesa.
- Ter ido ao mercado foi consequência - ela abriu as sacolas e começou a organizar as compras nos armários - eu fui te buscar na Garret's.
- Eu quase liguei pra você, mas consegui uma carona de última hora - um sorriso surgiu em em meu rosto - mas obrigado mesmo assim.

Skye ficou em silêncio olhando pra mim com um sorriso enorme e uma sobrancelha erguida.

- Que foi mãe? - não consegui evitar de rir.
- Estou esperando você me contar que a "carona de última hora" foi na bicicleta do vizinho da rua de trás - ela apontou para os fundos de casa.
- VOCÊ VIU?! - me surpreendi - anda me espionando Senhorita South?
- Nem precisei! O destino colocou vocês dois rindo numa bicicleta vintage bem ao lado do meu carro, me surpreendo como você não me viu.
- Eu estava distraído...
- Olha o tamanho desse sorriso, você estava mais que distraído Adrien, eu te conheço!

Skye me olhava com os olhos esperançosos. Eu não podia mentir pra ela.

- Okay eu confesso... mas não temos nada!
- Eu sabia - ela voltou a guardar as compras - mas, não era ele que namora a loirinha da rua de trás a Margaret, Marilyn... Meri...
- Meredith.
- Isso, Meredith, eles não namoram? Você mesmo me disse.
- Ao que tudo indica eles não tem nada, as famílias são próximas, só isso.
- As famílias são próximas... ele te contou ou você ouviu de alguém? É um ponto bem importante.
- Tecnicamente ele contou pra mim... de primeira não diretamente pra mim... enfim, eu sei.
- Como se conta algo pra você e não conta ao mesmo tempo? Deve ser coisa dos jovens de hoje em dia, me sinto cada dia mais velha.
- Se você considera cartas anônimas coisa de hoje em dia...

Quando terminei minha frase não parecia nada demais, até eu me lembrar que ela não sabia absolutamente nada sobre a Queen e eu acabei de contar pra ela no susto. Skye virou de uma vez só com os óculos na ponta do nariz.

- Cartas? - ela disse calmamente mas com seus grandes olhos azuis arregalados o suficiente pra demonstrar sua surpresa.

Skye até esqueceu de terminar de guardar as compras. Acabei - sem ter muitas alternativas - lhe contando toda a tour das cartas e a Queen of the Clouds, desde o baile promovido pelo Gardenia até a carona de bicicleta de hoje.
Skye lia em voz alta - e com a maior atenção - a carta que ele me mandou de volta.

- "...não sei se você vai me responder, mas saiba que estarei te esperando, adoro um bom mistério e você me intriga bastante" Você respondeu ele?
- Sim, ontem mesmo René a entregou.
- Adrien... - Skye levantou os óculos com um dos dedos - se eu soubesse que você protagonizaria um filme de romance de época em pleno século 21 eu me esforçaria mais pra parecer uma mãe refinada.
- Para de besteira mãe - ri - eu também não sou "a típica e clássica duquesa apaixonada pelo príncipe francês recém chegado", então estamos quites, no final acho que não é pra ser clichê mesmo.
- É realmente muito romântico, não dá pra negar... mas filho - ela me olhou nos olhos - você acha que cartas anônimas são o melhor caminho? Não estou querendo te desencorajar nem nada, cê sabe que não tem pessoa que queira te ver feliz assim como você está mais que eu mas, eu só tenho medo que você se machuque, a última vez já foi dolorosa demais.
- Não acho e definitivamente não era pra passar da primeira, mas você sabe que eu sou tímido demais e parece que quando eu estou com o Heron fica pior. Eu só o encontrei hoje porque a René me enganou e eu não sei como consegui ajudá-lo com o trabalho dele falando cinco palavras por frase. Eu não consigo lhe dizer tudo que está na minha cabeça por isso a ideia das cartas foi irresistível, foi o único jeito que eu achei pra ser eu mesmo e falar tudo que está aqui - apontei pro meu próprio coração.

Skye me olhou. Ela tinha um sorriso doce no rosto mas não estava feliz, e eu não tirava a razão de toda a sua preocupação. O final do ano passado deve ter rendido alguns traumas.

- Ei - sorri tentando confortá-la - eu sei bem dos riscos que eu tô correndo, eu gosto dele mas estou preparado pro que vier, nunca mandei cartas esperando que ele se apaixonasse porque talvez ele seja hétero, o Heron não me odiando já está de bom tamanho e gostar de alguém não é pecado, é?
- Óbvio que não - ela riu - mas você me promete que não vai ficar muito mal caso as coisas não saiam como o esperado?
- Ai mãe - ri e a abracei - se isso te deixar mais tranquila, eu prometo.
- Mas enfim - nos separamos e ela levantou do sofá - enquanto a gente faz o jantar, porque você não me conta mais sobre esse Heron? Ele é de família boa?
- Skye! - gargalhei
- Paciência comigo Adrien, ainda estou no caminho da alta responsabilidade de uma mãe de adolescente.
- Combina mais com você perguntar de que casa de Hogwarts ele é do que isso.
- Eu sou muito mais responsável do que isso - Skye deu uma pequena pausa - ai tá bom, ele é de qual?
- Vamos fazer a janta logo mãe.

Entrelacei meu braço no dela e fomos para a cozinha sem mais papos sobre Heron e minhas cartas anônimas naquela noite.
Eu não esperava ter de contar tão cedo sobre o Heron para Skye, mas parte de mim se aliviou por escutar opiniões diferentes das minhas ou das da René. Sei que, muito provavelmente, o que eu disse não vá mudar os pensamentos de Skye sobre o quão arriscado é atirar no escuro com o lance das cartas, ela sempre diz "a dor da queda é menor quando se cogita a possibilidade de cair", como se acalma o coração de uma mãe que pensa assim? Meu sonho é algum dia saber o que deu tão errado na vida amorosa da minha mãe pra ela estar o tempo inteiro na defensiva, mas se nem o Tio Willie que é o irmão mais próximo dela sabe, acho difícil algum dia eu descobrir.

Depois do jantar, enquanto fazia companhia para Skye na sala e a observava trabalhar, recebo uma ligação de vídeo de René.

- René está ligando. Vou subir, se importa? - disse para minha mãe que desviou o olhar do tablet rapidamente.
- Ah não, pode ir.

Me levantei do sofá aos pulos e corri para o andar de cima.

- Vê se não dorme muito tarde - ela gritou.

Atendi assim que fechei a porta do meu quarto.

- Oi - me joguei na cama.
- Você não me xingou nem agora e nem nas últimas três horas, pelo visto meu plano deu certo - ela exibiu um sorriso enorme.
- A notícia boa é que você não vai precisar pagar meu almoço.
- Eu te falei que ia dar certo! Com você tem que ser na marra, quantas vezes já disse isso? - ela deu um gritinho, ri e revirei os olhos - mas então, o que aconteceu? Sobre o que conversaram? Teve algum flerte?
- Ei vai com calma René! Lembra que eu fui apenas ajudá-lo com um trabalho?
- Mas vocês ficaram a tarde toda só fazendo esse trabalho?

Fiquei em silêncio, René ergue uma sobrancelha. Eu acho que nem precisava dizer.

- Okay okay - ela passou a mão pelo rosto - então me diz, aconteceu alguma coisa diferente? Uma mão batendo por acidente, uma divisão de guarda chuva...
- Ele me deu uma carona de bicicleta.
- OPA! - René exclamou alto, percebendo a altura se recompôs e sorriu largamente - cê tá me dizendo que...
- Eu e ele viemos na mesma bicicleta - ri timidamente, sentia minhas bochechas queimarem de vergonha - a chuva nos pegou o caminho todo mas viemos juntos... e cantando Beatles.
- BEATLES?! Isso saiu melhor do que eu imaginei! Se continuar assim cê nem vai precisar mais da Queen daqui um tempo.
- O que eu disse sobre ir com calma Dona René?
- Mas até quando você pretende enviar cartas Addie? Sério, digo isso pro seu próprio bem. Achei que era só até você ver que consegue falar com ele sem gaguejar e tipo, vocês passaram uma tarde toda juntos!
- A única coisa que está me impedindo é o medo de perdê-lo pra homofobia, você sabe que isso tem muita chance de acontecer. Eu vou tentar conhecê-lo melhor primeiro, e quando me sentir seguro eu vou contar, até porque não sei se vou conseguir sustentar como Adrien não saber tudo que eu sei como Queen.
- Não posso tirar sua razão, mas não deixa a comodidade falar mais alto porque te conhecendo, pra você desistir de falar com alguém pessoalmente é um dois.
- Ai René faz uma semana que a gente troca cartas, fica calma - sorri, ela apertou os lábios - daqui umas... 10 cartas você me cobra de novo.
- DEZ?! Olha Adrien você realmente é inacreditável.
- Tá bom mãe - disse e rimos.
- Beleza mas me conta mais que não deve ter sido só a carona que aconteceu de interessante - René se aproximou da câmera empolgada.
- Teve os macarons... - enrolei lhe causando mais curiosidade.
- CON. TA.

A cada novo detalhe que eu contava a René, ela surtava mais um pouco junto comigo. Perdi as contas de quantas vezes ela disse naquela noite que se arriscar nem sempre é o fim do mundo e que dessa vez deu mais que certo. Eu ainda acho que não sou a melhor pessoa quando o quesito é "não ter planejamento de antemão", mas sinceramente nos últimos dias eu ando saindo tanto da zona de conforto que fica até contraditório dizer que não. 

Cartas para Heron HayesOnde histórias criam vida. Descubra agora