QUEM VIGIA QUEM

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- Eu deveria ter acabado com Josué assim que chegamos ao acampamento. - Pensou Rhasmuhz, conversando com seu traje enquanto retornavam com o exército de Israel para o acampamento.

- Você sabe que ele deve ser eliminado obedecendo a algumas diretrizes e...

- Sei de toda essa merda! Só acho desnecessário, pois esse povo idiota e atrasado nem ao menos entenderia o que estaria acontecendo, caso eu o matasse mesmo trajado.

- Você sabe que não é bem assim, pois o equilíbrio do Continuum é muito delicado e qualquer variação de grande intensidade pode causar um colapso, do qual nem ao menos sabemos quantificar as possíveis consequências.

- Você vem querer explicar isso a mim, Traje? Logo eu que participei de várias etapas do projeto de deslocamento temporal...

- Então não entendo o que você ...

- Ora, como acha que eu me sinto, marchando feito um imbecil completo, ao redor de uma cidade perdida no tempo, escutando o som estridente de trombetas?

- Você deveria controlar melhor o seu humor...se quiser posso cuidar disso eu mesmo.

- Não seja idiota. Por que acha que não permiti sua conexão a nível máximo? Pensa que sou como os outros, que gostam de uma interação total? Me recuso a perder parte de minha personalidade para uma entidade sintética como você...

- Sei das suas restrições quanto às conexões, mas procure ver os benefícios que isso pode lhe trazer.

- Pode parar com essa sua conversa mole, pois já basta que você consiga se comunicar comigo mentalmente. Agora acessar minhas sinapses neurais? Nem pensar.

- A você cabe a decisão Rahsmuhz, mas lembre-se que formaríamos uma dupla muito mais eficaz caso nossa interação fosse completa.

- Eu me garanto Traje, não preciso ter intimidade com você para qualquer coisa que seja. Basta que você cumpra o seu papel de me fornecer as informações de que preciso para meu processo decisório, nada mais do que isso.

- Como queira, Rhasmuhz.

A conversa com o Traje ao menos serviu para distrai-lo, pois quando deu por si, percebeu que já estavam chegando ao acampamento. Mais um dia de marcha maluca se encerrava. Agora era enfrentar a lavagem que chamam de comida e depois tentar dormir, como se isso fosse possível, com a total falta de conforto a que eram submetidos nesta era. Uma pena que não poderia mais voltar para o tempo com Lothan-Muhr, pois este ouviria poucas e boas por tê-lo colocado numa missão como essa.

Como de costume, Mezarh-Gan, trajando Abiel, mantinha uma distância segura enquanto vigiava Rhasmuhz. Mesmo sabendo que ele não estava a par de sua presença, tomava todas as precauções para que não desconfiasse de nada. O Traje estava devidamente configurado para que caso se desce o encontro dele com a mulher que havia matado Mhalathan, tudo fosse documentado.

- Ele não parece nada satisfeito. - Pensou Mezarh-Gan, puxando seu traje para uma conversa.

- Pelo que pude perceber ele tem um pouco de dificuldade em se adaptar a essa era.

- Não só ele.

- Mas o desconforto dele é visível.

- Você sentiu o gosto dessa comida, sabe do que estamos falando. Isso sem contar os hábitos de higiene, se é que podemos chamar assim.

- Pensando bem, até que em quatro mil anos a humanidade evoluiu um bom tanto. Jamais imaginaria um cenário como esse.

- Isso aqui só faz atiçar a minha curiosidade de como foi que se deu a evolução da humanidade. Olho para esse povo aqui e tenho muita dificuldade em crer que eles são os antepassados de nossa civilização.

- Quanto a isto não resta dúvida. Muito provavelmente eles permaneceram presos nesse tipo de civilização até que algum ramo da ciência os libertou dessas amarras culturais. Difícil é imaginar quando e como isso ocorreu.

- Esse tipo de informação deve ser impactante, para que o governo central decidisse eliminar todas as informações acerca de nosso passado.

- Com certeza é uma forma de evitar que algum tipo de problema ou falha volte a acontecer.

- Aí está algo em que eu tenho pensado muito, sem, no entanto, chegar a uma conclusão minimamente satisfatória. Nunca me convenci que o conhecimento pleno do passado pudesse ser assim tão perigoso para a estabilidade de nossa civilização. Mas agora, tendo contato direto com ele, começo a imaginar que tipo de catástrofe se abateu sobre nós, em nosso processo civilizatório.

- Esta era é uma boa mostra de que nosso passado tem pouca conexão com nosso presente. - Observou o Traje.

- Bem, vamos parar de filosofar, pois isso não nos leva a nada, e vamos continuar de olho em nosso amigo ali, que novamente jogou fora sua comida, sem ninguém notar.

- Se continuar assim, a mulher nem ao menos precisa matá-lo, pois isso acontecerá por inanição. - Gracejou o Traje.

Por pura ironia do destino,  Aderet passou ao lado de Rhasmuz, e sabedora de que este era um trajado, olhou-o atentamente, sem no entanto conseguir perceber qualquer detalhe que o denunciasse.

Chegando perto da cozinha, comunicou-se mentalmente com seu traje.

- Eu deveria matar esse filho da puta agora mesmo!

- Novamente deixando o ódio turvar seus pensamentos Anakx?

- Você sabe que ele deve ser um dos que estavam junto com o diretor quando...

- Sei disso, mas como já disse, isso tudo é muito maior do que uma simples vingança.

- Você está menosprezando o que passei nas mãos deles, é isso??

- Não, claro que não...

- E não só eu. Lembre-se de todos os outros...

- Minha trajada também foi trucidada, e não consegui fazer nada por ela.

- Lembrou de como a encontrou, de tudo o que fizeram com ela? E mesmo assim você se atreve a dizer que a minha fúria é uma simples vingança?

- Anakx, por mais evoluído que eu seja, não possuo sentimentos, na acepção pura da palavra. É claro que me incomoda profundamente a lembrança do que fizeram com todos vocês, principalmente com minha trajada. Mas isso não embota o meu raciocínio lógico, e mais do que nunca nós precisamos dele.

Irritada com seus próprios sentimentos, Aderet rumou para detrás do acampamento, onde fitou longamente o horizonte.

- A minha vida perdeu todo o sentido, toda a razão de ser. Eles tiraram tudo de mim, tudo!

- Sei disso, mas...

- Sabe porra nenhuma! Como você mesmo disse, é desprovido de sentimentos, então nunca saberá a dor que me rasga por dentro. As imagens de tudo que aconteceu não saem de minha mente.

- Eu posso cuidar disso, fazendo com que essas lembranças sejam apagadas.

- Não Traje, pois são elas, as lembranças doloridas que me deram forças para chegar até aqui, e elas só serão apagadas com o sangue daqueles que me fizeram passar por tudo isso.

- Ou seja, a sua vingança.

- Sim, minha vingança! E ela será com fúria e muita dor. No que depender de mim, a chegada da morte será para eles somente um alívio. Eu vou sempre levar em consideração tuas observações e orientações, mas lembre-se, de que a vida desses merdas me pertence.

- Como quiser.

O silêncio entre ambos mostrou ao Traje que por mais íntima que fosse sua ligação com ela, não conseguiria dissuadi-la acerca do uso da violência extrema. Não se opunha à eliminação dos inimigos, mas impingir a eles sofrimento desnecessário, como o feito a Mhalathan, lhe causava total estranheza. Isso provinha de sua programação neural, e contra ela, ele pouca coisa poderia fazer.   

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