PERDÃO

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Os primeiros raios do sol que adentraram à janela encontraram Raabe parada, observando o nascer do dia. A madrugada havia sido relativamente fria e ela trajava por sobre sua roupa um xale fino de lã, a lhe proteger o peito. Seu olhar mirava o horizonte, olhando o tudo e ao mesmo tempo não vendo nada.

A porta do quarto abriu-se lentamente, dando a impressão de quem a abria tivesse a esperança de que ela ainda estivesse dormindo. Virou suavemente seu rosto, e viu sua mãe entrar. Voltou a olhar o horizonte, temendo já saber onde a conversa levaria as duas.

- Bom dia, minha filha.

- Bom dia, mãe.

- Pensei que ainda estivesse deitada, mas vejo que acordou cedo.

- Já faz um bom tempo que estou de pé...algum tipo de apreensão levou meu sono embora.

- Estamos todos preocupados. O cerco sem novidades dos israelitas, os burburinhos na cidade e a sua decisão de não mais...

A velha calou-se, nitidamente querendo cuidar para não ofender sua filha.

- Desde a minha decisão de não mais me deitar com homens, é isso que queria dizer, mãe?

- Sim, é isso mesmo. Eu fiquei desesperada quando nossos alimentos acabaram, mas agora, pensando melhor, meu coração se alegra em vê-la assim, junto de nós, sem ter de...

Novamente o silêncio.

- Você não precisa ter medo das palavras mãe, pois elas jamais me machucarão mais do que as lembranças de todas as vezes que me deitei com os homens que adentraram a este quarto. Não tenho vergonha do que fiz, pois como bem sabe, isso era necessário.

A velha aproximou-se, postou-se ao seu lado e num gesto surpreendente, abraçou sua cintura e repousou a cabeça no ombro da filha. Raabe retribuiu o carinho colocando sua mão sobre o ombro da mãe, apertando-a contra si.

- Eu...eu lamento muito minha filha, por todas as vezes que eu fui dura com você, até mesmo te insultando, mas é que...

- Não precisa se desculpar mãe, sei que você simplesmente queria o melhor para mim.

Enquanto algumas poucas lágrimas rolavam pela face de Raabe, sua mãe chorou copiosamente, trazendo à tona os sentimentos que lhe sobrecarregava o coração.

- Ah minha filha, quanta dor eu senti ao ver você arruinar a sua vida...quantos sonhos eu tive de ver você casada, enchendo minha casa de netos...

- Eu também sonhei com isso...mas a vida determinou que fosse diferente, não é mesmo?

A velha agora a olhava de frente e com ambas as mãos enxugava as lágrimas da filha e afagava seu rosto.

- Quem sabe o que a vida te reserva, não é mesmo? Agora que você tomou esse novo rumo, talvez algum bom homem...

- Não se iluda mãe, não existe um bom homem aqui em Jericó. Todos sabem que eu sou uma prostituta, e ninguém vai me levar em casamento. Sou uma mulher marcada.

- Você não é mais uma...uma prostituta, minha filha!

- É verdade mãe, não sou mais, e jamais me deitarei novamente com qualquer homem que seja. Confio que Deus vai me dar um caminho de vida novo.

- Sim, com certeza Baal vai lhe...

- Não estou falando de nossos deuses.

- Ah, havia me esquecido de que você agora simpatiza com o deus dos hebreus.

- Sim, estou falando do Deus deles. Meu coração me diz que ele é verdadeiro, e não uma simples estátua, como essas aberrações que idolatramos aqui.

- Se isso traz esperança ao seu coração minha filha, que assim seja. Espero que esse deus estranho nos abençoe, pois iremos precisar.

E ficaram assim, abraçadas, olhando o horizonte, onde o sol agora brilhava com toda intensidade, anunciando o novo dia. Esticando a cabeça como que querendo ver mais longe, a velha quebrou o silêncio.

- Não me leve a mal filha, mas lá vem a procissão deles novamente.

- Eu sei mãe...tem sido assim todas as manhãs.

- Já perdi a conta de quantas vezes eles já rodearam nossas muralhas.

- Foram seis vezes. Hoje será o sétimo dia seguido que eles fazem exatamente tudo igual.

Os israelitas aproximaram-se rapidamente e como das outras vezes, circundaram as muralhas, não interagindo com ninguém da cidade. Até mesmo porque os únicos que prestavam atenção a eles eram os guardas da muralha, ninguém mais. A não ser Raabe.

Ela e sua mãe, ainda abraçadas, ficaram rente à janela, observando. E novamente, como nos outros dias, apenas um dos soldados erguia sua cabeça e olhava diretamente para ela.

- Impressão minha ou aquele soldado ali está te encarando?

- Esta sim. Ele tem feito isso todos os dias.

- É um dos que esteve aqui, com certeza.

- Não mãe, não é, e nem faço ideia de quem seja.

- Bem, de qualquer maneira ele tem bom gosto, não é mesmo? Sua beleza encanta a todos e...

- Pare de me bajular, sua velha sem vergonha. - Riu-se Raabe, algo que não fazia a muito tempo. Pegou a mãe pela mão e foram juntas cuidar dos primeiros afazeres do dia.

* * * * * * *

O exército de Israel estava perto de circundar a cidade, e o coração de todos os guerreiros palpitava de ansiedade.

- O que você tanto olha aquela mulher, Salmom? - Fulminou Eliahim.

- Eu...eu...não estava olhando...

- Não precisa gaguejar homem. Tenho visto que todos os dias quando passamos por aquele ponto da muralha, você fica olhando para a mulher na janela.

- E o que tem você com isso?

- Não existem mulheres suficientes no acampamento para que você se interesse por uma maldita cananeia?

- Eu não...tenho interesse nela... eu só...

- Todos sabemos que você não tem interesse por mulher alguma Salmom. Não me admiraria se algum dia você pedisse um dos guerreiros em casamento.

- Aquela é a casa da prostituta, de quem falaram os espiões. - Disse o soldado que estava ao lado de Salmom.

- Ora, mas vejam só. Então foi preciso que aparecesse uma prostituta para inflamar os desejos de nosso amigo...

- Cale a boca Eliahim! - Gritou Salmom.

- Conte-nos...você já teve sonhos eróticos com ela?

- Como é que ele vai ter sonhos com uma mulher, se nem ao menos sabe o que fazer com ela?

Os que estavam ao redor riam-se a não mais poder. 

- Se você quiser realmente ficar com a prostituta Salmom, nós podemos te ensinar como possuí-la.

- Me deixem em paz, bando de idiotas! - Praguejou, enquanto se afastava do grupo, indo para o outro lado da procissão.

A zombaria e os risos ainda perduraram alguns instantes, alias, como sempre acontecia. Eliahim era o que mais ofendia a Salmom, sempre que possível. Comentava-se no acampamento que os dois tinham entre si uma antiga rixa, pois Salmom era um guerreiro muito mais habilidoso, nunca tendo sido superado nos jogos de combate que os soldados vez por outra faziam.

Salmom era um homem de poucas palavras, reservado e tímido. Mas quando participava de combates, simulados ou reais, transformava-se num guerreiro excepcional, chamado por alguns de seus pares de Leão. Nas rodas ao redor das fogueiras noturnas, muitas vezes foi contada a história de como o jovem Salmom foi decisivo na batalha de Seom e quando Israel enfrentou e venceu Ogue. Guardaram desse tempo a imagem dele surgindo todo ensanguentado por entre as dezenas de cadáveres que produziu com sua fúria, segurando suas duas espadas, pois era habilidosamente ambidestro.

Sem qualquer sombra de dúvida, ele não era alguém para se enfrentar num campo de batalha.

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