A CÉLULA

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A Colônia-Alta foi assim designada por ter sido edificada sobre uma estrutura rochosa que se elevava a mais de 500 metros da planície. Já a Colônia-Baixa, que fica aos pés da primeira, foi batizada assim para lembrar aos seus habitantes sua natural submissão àqueles que estavam na parte alta, pois lá estava a nata da sociedade, formada principalmente por cientistas e engenheiros. A parte baixa ocupava-se essencialmente dos processos de produção e serviços, sendo constituída basicamente por uma única classe social, os "Fazedores".

Arthur Milinkov nunca conheceu a Colônia-Alta, pois como Fazedor, trabalhava em sua pequena loja de produtos de subsistência que montara a mais de 40 anos. Era viúvo, e seu único auxiliar era o seu também único filho, Dharmus. 

Mas a loja Milinkov guardava um segredo a 7 chaves, que se fosse descoberto, seria a sentença de morte para ele, seu filho e alguns outros envolvidos. Hoje, sem que os transeuntes percebessem, transcorria dentro dela uma reunião. Por ser secreta, era realizada no depósito, longe de qualquer possibilidade de descoberta. Isso sem contar que um disruptor de sinal estava em plena atividade, impedindo que o sistema central verificasse atividade humana no local.

Quando o último dos diáconos terminou sua oração, o líder da reunião encerrou o período com um sonoro "amém", que foi seguido por todos os presentes. Lentamente se levantaram do chão, onde de joelhos impetraram suas orações clamando a Deus pela sua intervenção num tempo tão difícil.

- Amados irmãos, lembrem-se que ainda não conseguimos definir nosso próximo local de reunião, mas assim que isso for feito, um mensageiro irá levar até vocês esta informação. Enquanto isso continuem intercedendo pelos motivos aqui colocados hoje. E lembrem-se de manter total sigilo, pois o governo central está fechando o cerco sobre nossas células.

- Fique tranquilo irmão Arthur, estamos cientes dos perigos que nos cercam - Respondeu convicto um dos diáconos.

Erguendo sua mão direita sobre os presentes, Arthur baixou levemente o rosto em direção ao chão e com os olhos fechados, despediu a todos abençoando-os com uma breve oração.

- Que a graça do Senhor Jesus acompanhe a todos nós nesta difícil jornada e que sua face gloriosa resplandeça sobre nós e sobre todos os seus filhos espalhados pela terra.

Lentamente as quatorze pessoas presentes à reunião saíram da sala comercial uma a uma, em pequenos intervalos de tempo, para não serem notados como que reunidos. Quando o último deles saiu, Arthur acionou o letreiro holográfico de sua loja, indicando que estava aberto ao público novamente.

- Você ainda não conseguiu se acostumar, não é mesmo pai?

- Do que você está falando Dharmus? ─ Respondeu sorrindo, o ancião.

- Em suas orações o senhor sempre cita "por toda a terra" esquecendo-se de nossas colônias na Lua e em Marte, isso sem falar nas 7 estações orbitais.

- É verdade meu querido, é verdade. Eu ainda tenho um pouco de dificuldades em me adaptar a certos avanços tecnológicos. Para mim, toda a vida humana está restrita ao nosso planeta.

Sorrindo, abraçou fortemente seu pai e fitando-o ternamente, dirigiu-lhe palavras de conforto - Eu sei, mas o mais importante é que você continue fazendo o que Deus lhe ordenou, tanto aqui na terra como em qualquer outro lugar.

- Nem pense em aventuras meu jovem, pois já estou velho demais para empreender viagens para fora da minha terra - respondeu, para em seguida soltar uma risada, tímida, porém sincera.

- Sempre que posso pai, eu fico imaginando como seria se eu pudesse me alistar nas forças de colonização. Não seria incrível?

-Ah Dharmus, sei que desde criança você sonha em ser um explorador espacial. Mas creio que quanto mais o tempo passa, mais difícil será realizar este seu sonho.

- Eu sei, principalmente por causa de nossa fé.

- Sinto tristeza e frustração em suas palavras meu filho, e lamento muito por isso. Gostaria que você tivesse o privilégio de realizar os seus sonhos.

- Sei disso pai, mas são apenas sonhos de criança, como você mesmo acabou de falar.

Nem mesmo o sorriso iluminado conseguiu esconder de Arthur a amargura que havia no coração de seu filho, pois a fé que professava não só o impedia de pertencer às forças colonizadoras, como também o forçava a levar uma vida dupla, onde nem mesmo seus amigos mais chegados desconfiavam que ele fosse um crédulo.

- Creio que se eu fosse mais jovem, talvez eu também sonhasse em ser um colonizador.

- Olhe que para um homem de 114 anos, até que você está bem conservado - brincou Dharmus enquanto seguiam abraçados, dirigindo-se para o núcleo de controle do estabelecimento.

- Devem ser os produtos de beleza que eu uso todas as noites. - A sala encheu-se da gargalhada de ambos, ao mesmo tempo em que o primeiro cliente do dia adentrava.

E seguiram trabalhando assim juntos, pai e filho. 

Dharmus era um jovem forte e bem-apessoado, que fazia do seu treinamento físico prioridade absoluta. Não se passava um dia sequer sem que dedicasse ao menos duas horas ao seu duro e intenso treinamento. Até mesmo Arthur se admirava com tamanha dedicação. 

O que desconhecia, era que o coração do filho não compartilhava da mesma doutrina pacifista pregada por ele, onde a submissão às autoridades constituídas era uma exigência formal entre os membros das células. Toda autoridade provém de Deus, e por isso devemos interceder por nossos governantes - ouvia repetidamente seu pai pregar, sem conseguir, no entanto, convencer-se a aceitar a submissão. 

Quando iniciou secretamente seus treinamentos paramilitares, sentiu-se como que traindo a confiança dele e de todos os membros da sua célula. Mas em seu íntimo, de alguma forma tinha a mais absoluta certeza de que o que estava fazendo era mais do que necessário nos dias tensos que viviam. 

O cerco aos crédulos que restaram na Terra se intensificava cada dia mais, e sua principal preocupação era com o bem-estar de seu pai, e por ele seria capaz de fazer qualquer coisa. 

Sim, qualquer coisa!

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