XVII

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19 de agosto de 2002.

Vitória Falcão

Era finalzinho de tarde e eu e Ana estávamos jogando baralho. Desde o começo do jogo me controlava para não rir, pois Ana, ao invés de jogar uma carta com um número a mais ou a menos, jogava uma que tivesse o mesmo naipe.

— Ana... — ia dizer novamente que não era daquele jeito, mas ela me interrompe.

— Que porra! — Ana bufa e abaixa sua mão, ainda sem mostrar suas cartas.

Vendo aquela carinha toda emburrada porque não conseguia jogar, não consigo controlar minha risada. Porém, pouco tempo depois me preocupo ao escutar um choro baixo vindo da mesma.

— Meu Deus do céu, Ana, o que foi?

— Tu tá rindo de mim! — ela responde, seguindo de um soluço.

Rio baixinho e vou até Ana, a abraçando de lado e depositando um beijo no topo de sua testa.

— Desculpa, bebê, não aguentei... Mas vem cá, tu quer coxinha?

Ela logo cessa seu choro, me olhando, e sorrindo logo depois. Era até engraçado, seu rosto todo molhado das lágrimas e um sorriso em seus lábios. Ana estava de tpm, sabia disso, ela ficava assim, toda chorosinha e estressada.

Fiz algumas coxinhas aqui em casa mesmo. Enquanto cozinhava a massa e enrolava os salgados, Ana ficava ao meu lado, beliscando os pedaços de frango desfiados.

Quando terminei, ela mal esperou as coxinhas esfriarem, pegou uma e se sentou no sofá com ela na mão. Ana assopra algumas vezes antes de dar a primeira mordida, fechando seus olhos quando começa a mastigar.

— E aí, ficou bom? — a pergunto, ainda não tinha provado.

— Uhum, demais! — Ana responde, dando outra mordida em seguida.

Quando Ana não estava mastigando o salgado, sorria. E eu sorria junto com ela. Ceús, eu sou completamente apaixonada por aquele sorriso. Enquanto a observava comer o salgado, me perdi em meus pensamentos.

Ana era pura vida, não hesita em fazer algo que quer, mesmo quando algo a impedia, dava um jeito. Ela não tem medo de se jogar de cabeça. Isso ficou ainda mais claro quando me pediu em namoro após o nosso primeiro beijo. E eu não era daquele jeito, tinha medo. Eu tinha medo de me entregar de novo, e apesar de eu confiar de olhos fechados nela, tinha medo.

Algumas horas depois de termos feito nosso lanche, Ana pega o violão e pouquinho tempo depois já havíamos chegado na pracinha que já virou parte da nossa rotina.

Nos sentamos no chão e Ana posiciona Tinho em seu colo, já montando o primeiro acorde. Hoje ela cantou uma ou três músicas a mais do que de costume, e em algumas a acompanhei cantando a segunda parte das letras.

Quando ela termina de cantar e fica ali, apenas dedilhando as cordas do violão com a cabeça baixa, concentrada no que fazia, vejo uma mulher se aproximar de nós. Ana levanta sua cabeça ao perceber a presença dela.

— Oi, meninas, boa tarde. — ela nos cumprimenta, com um sorriso em seu rosto.

— Boa tarde! — eu e Ana a respondemos ao mesmo tempo.

— Eu venho aqui todo dia, sempre que posso, e sempre ouço vocês duas cantarem. Senti até falta da música esses dias atrás que vocês não vieram... Ah, e meu nome é Cecília!

— Cecília... — repito em voz alta, me esforçando para gravar seu nome em minha memória. — Meu nome é Vitória, e ela é a Ana!

Então, Cecília era o nome dela. Ana e eu sempre a vimos de longe quando vínhamos cantar aqui. Ela era um pouco mais baixa que eu, seu cabelo é castanho e seu sotaque carioca era MUITO forte. Hoje, ela vestia uma camisa branca com um short preto.

Cecília se sentou ao meu lado e passamos nós três o resto da tarde conversando. Na hora de ir embora, trocamos nossos telefones.

[...]

— Eu quero que tua voz cante no meu ouvido, Ninha — digo enquanto me deito ao do lado de Ana e me aconchego em seu peito.

— Eu te amo, Vi — ela diz, de uma só vez.

Tento juntar coragem para dizê-la apenas três palavras. Aquelas três palavras que já estavam tão claras em meu coração, mas que eu tinha tanto receio de dizer em voz alta.

— Eu também, Ana. — foi a única coisa que consegui a responder.

De canto de olho vejo ela sorrir fraco, enquanto começava a fazer carinho em meu ombro.

— Me fala do amor, Ana, eu gosto de te ouvir falar do amor.

— Já disse tanto do amor, através da minha voz meu coração já passeou em tanto lugar por aí... Mas agora eu vejo que eu nem sabia nada.

Pouco a pouco, ia ficando mais sonolenta enquanto me perdia no olhar de jabuticaba que me fitavam.

— Você me lembra que não há nenhum perigo no quarto escuro pra dormir, e agora eu durmo bem... — é a última coisa que eu digo, com a voz embolada de sono antes de adormecer.

Senti Ana me observar até eu dormir. E adormecemos assim, aninhadas uma na outra.

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