20 | Dilemas Morais

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Raiva, doce e madeira.

...E sim, após Mina recitar minha poesia sobre o carnaval que fora escrita pensando nos dias que tivemos juntas, eu tentei fazer o exercício de desespero com ela e todos da festa começaram a ouvir, automaticamente se interessando e indo até meu quarto para verem o que quer que estivesse acontecendo. Isso não me incomodou, não mesmo, exceto pelo desgraçado mesquinho ser o único dentro do nosso ambiente enquanto os outros apenas observavam de fora. Quando percebi que havia funcionado e que incitei a criatividade e o lado poético de Mina enquanto Ezequiel via, pensei que ele ficaria bravo ou qualquer coisa do gênero, mas pelo contrário: quando Mina saiu, ele tinha um grande sorriso desgraçado nos lábios, sorria abertamente como se fosse agradável e a agarrou pela cintura, puxando de lado o corpo de sua esposa (e minha amante).

Mina, com toda sua inocência, ainda tirou coragem de algum lugar para perguntar se ele havia gostado de suas palavras e se não ficaria bravo por ter criado algo. Ezequiel discordou, disse que ela poderia ter talento para aquilo, deu um beijo em sua testa como sinal de cuidado – algo que agora sei que ele claramente não faz – e parecia ainda mais animado que ela.

O pior, querido não-sei-para-quem-estou-escrevendo, é que após a recitação e a casa começar a ganhar vida novamente com as pessoas dispersando, há uma semana na festa aconteceu algo que eu jamais pensei que aconteceria. Imagino o quanto o desgraçado pode ter o ego inflado, mas ele pareceu passar de qualquer limite e eu quase explodi.

Primeiramente, fui para cozinhar servir minha especialidade – o chocolate quente com um pouco de canela e anis – que foi algo pedido por um de meus amigos da faculdade que estavam ali. Como preparo aquela bebida com certa frequência, não vi problema em aceitar seu pedido e servir depois do bolo delicioso que minha mãe preparou. Com todas as pessoas, inclusive Mina, no quintal ou andando pela casa, Ezequiel escolheu parar bem a minha frente no balcão da cozinha. Eu perguntei se ele gostaria de algo, se estava confortável, porque aliás, o rosto dele já não me é agradável, mas parecia ainda pior e sorria misterioso. Por sorte de alguma entidade, ele respondeu que estava bem, e que bom, porque eu não estava nenhum pouco a vontade de servi-lo caso me pedisse. Até esse ponto tudo bem, afinal, ele era um convidado como qualquer outro, mas depois comecei a compreender suas intenções.

Ezequiel começou a me elogiar mais do que o comum e mais do que deveria enquanto estávamos a sós na cozinha. Ele dizia que eu parecia ter um cabelo macio, apesar de curto; tinha um corpo bonito; e o principal: um rosto limpo de qualquer mancha e que ele nunca precisaria pedir por mais maquiagem para cobrir as imperfeições. Apesar de ser coreana, ele chegou a elogiar até a cor mais clara de minha pele, o que claramente denunciava que ele não sabia o mínimo de história. Sim, com toda coragem do mundo e com um péssimo caráter, ele parecia ter segundas intenções enquanto proferia aquelas palavras nojentas sobre mim. Se estava se referindo a minha pessoa como alguém aparentemente melhor que Mina e sem pintinhas no rosto, então era ainda mais desgraçado do que havia imaginado. Eu sou apaixonada em cada detalhe daquele rosto, em cada defeito que ela possa ter.

Foi nesse momento que eu quase explodi. Respondi ríspida que não tinha tempo para elogios porque precisava continuar servindo os convidados. Ele até se ofereceu para ajudar, mas não respondi e saí da cozinha como um tiro. Minhas mãos estavam fortemente presas a bandeja de prata e na minha nuca escorriam gotículas de suor por causa do nervosismo. No mesmo instante, pensei em Mina. Tão inocente a maioria do tempo, bonita como nenhuma outra mulher daquela cidade e merecedora de todo amor do mundo. Bem, se ele não fazia o suficiente, não precisava se preocupar, eu faria por ele.

Para esvair um pouco da sensação de querer gritar e soltar todo o meu ódio em cima daquele homem, deixei a bandeja na mão de minha mãe e pedi carinhosamente para que terminasse de servir. Quando vi Ezequiel voltando para o quintal, vencido por não ter me tido aquela noite e indo conversar com os outros rapazes enquanto fumava, peguei na mão de Mina que estava sentada quieta e saí pisando forte, logo entrando com ela na minha casa novamente. Me certifiquei de não haver ninguém ali, já que todos estavam no quintal apreciando meu chocolate quente, e então abri a porta que vai até o porão, a colocando ali dentro e virando a chave em seguida. O cheiro de mofo, de madeira forte e de charuto velho não me incomodou nenhum pouco. Algumas vezes ela me perguntou o que estava acontecendo e porque estávamos ali, mas a única coisa que eu soube responder foi ''porque eu odeio Ezequiel'' e ''porque eu gosto de você e preciso te ter agora''.

Poeira Cósmica | MiChaengOnde histórias criam vida. Descubra agora