36 | Inversão de Existência

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Chaeyoung achava interessante analisar a forma que a atmosfera da cidade mudava quando o sol começava a se ocultar no horizonte. Era algo que, apesar de simples, a fazia refletir. Antes, os barulhos altos das vozes dos trabalhadores, os cavalos das charretes, caixotes sendo empurrados e campainhas tocando nas lojas tomavam conta principalmente do centro, mas uma vez que a noite começava, tudo cessava e dava espaço ao singelo, as risadas felizes, aos garfos raspando nas louças ao final do jantar e, quando o dia havia sido difícil, aos xingamentos e gritos destinados as mulheres. O último tópico, particularmente, Chaeyoung evitava pensar e comentar.

Os sapatos que tentava esconder debaixo do vestido ao dar passos curtos não conseguiam ser inibidos devido ao barulho pesado que causavam na estrada de terra. Ao invés do som fino dos saltos, explicitava seus ideais ao usar os pares que quisesse, embora a saia longa cobrisse para evitar reclamações aquela semana, exatamente a semana do festival, que era o único motivo plausível para estar nas ruas aquela hora. Nas mãos, como uma distração e um prazer a mais, levava consigo um picolé de morango que vez ou outra encontrava seus lábios enquanto caminhava. Definitivamente, a escrita, a faculdade – e um picolé – poderiam movê-la a qualquer lugar e a qualquer hora.

Naquele fim de quarta-feira, a coreana tinha como destino sua antiga casa, lugar onde seus pais e seu irmão ainda moravam. Era uma das únicas vezes que precisava visitar o local após começar a morar sozinha. Aquela casa lhe trazia lembranças boas e ruins, mas especificamente seu quarto fazia com que se transportasse para a infância, em que os momentos de felicidade, de discussões e de brincadeiras com Olívia voltavam a ser reais.

A parte boa do trajeto era que ao caminhar pelos bairros mais humildades da cidade, a atmosfera parecia se alterar para algo mais leve. Os moradores preferiam deixar suas casas e afazeres para se aglomerarem em alguma calçada, juntos e sentados nas cadeiras de corda para dividirem uma garrafa de café após a refeição. As roupas daquela região sempre eram mais leves e claras e ninguém – exceto as senhoras que não tinham o que fazer – parecia se importar com a vida do outro. Os olhares dos que sabiam sobre os rumores não pareciam mostrar confusão ou ódio, mas sim compaixão. Provavelmente, estavam cansados da vida e de suas funções o suficiente para não quererem saber de mais problemas. Chaeyoung se lembrava que, quando criança, os assuntos que mais ouvia eram os que envolvia adultério, novos namoros ou gravidez indesejada, mas quando o absurdo era grande como uma mulher amando outra, não comentavam como se ninguém soubesse. Isso deveria ser resolvido na delegacia, não perpassar todas as bocas.

– Boa noite, Chaeyoung! – escutou o soar de uma voz masculina e fina perto de si enquanto seguia pela calçada.

Ao olhar para a rua, percebeu que era Isaque, filho de uma vizinha e que havia crescido mais do que ela imaginava nos poucos anos em que não estava ali. Apesar da estatura e da definição do corpo de um adolescente, o sotaque tão brasileiro ao pronunciar aquele nome, os cachos castanhos e a pele escura continuavam do mesmo jeito, o que mudava era sua idade, que naquele ano deveria ser dezesseis ou dezessete. O garoto tinha um pedaço de madeira na mão e, com a companhia de um grupo de cinco amigos, brincava com uma bola e traves improvisadas no meio da terra. Além da diversão, aquela situação também se configurava como uma desculpa para que as senhoras se agrupassem para continuarem conversando sobre os rumores enquanto diziam que estavam cuidando das crianças. Um pouco patético.

– Boa noite, Isaque! – balançou a cabeça também como um cumprimento aos outros e mordeu o último pedaço do picolé para que pudesse jogar o palito em uma lixeira próxima.

Chaeyoung repetia o ato por todos os moradores que lhe cumprimentavam e que alegavam se lembrar dela quando mais baixa e com traços infantis, correndo de um lado para o outro vestida como seu irmão, em suas blusas sociais largas, suspensórios e boinas, quase se passando por ele no meio de tantos outros garotos. No fundo, eles pareciam querer comentar sobre o que discordavam e sobre os cabelos mais curtos – bem mais curtos do que deveriam estar – mas apenas franziam a testa, se afogando nas palavras não ditas.

Poeira Cósmica | MiChaengOnde histórias criam vida. Descubra agora