1. Lendas e presságios

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— Quando eu era pequena, nossa abuela sempre me contava histórias, até pouco antes de falecer. A minha favorita era sobre um príncipe que há muito tempo seduziu a Morte, uma donzela bastante bonita e sempre acompanhada de um lobo gigante. Sempre que a abuela repetia a história, o príncipe parecia ser mais herói e a Morte parecia ser mais... gentil.

Seus olhos ganharam um brilho especial conforme narrei o início da história.

— A Morte se encantou tanto com o príncipe que o presenteou com a juventude eterna e o levou para conhecer as maravilhas do mundo. Assim, eles viveram juntos por muito tempo. 

Ele reagiu com um suspiro encantado.

— Mas não se deixe enganar, isso não durou para sempre. Como poderia durar para sempre, quando os próprios mortais, com todo o seu dramático e doloroso encanto, são apenas passageiros na Terra? A Morte sabia disso. Ela sabia, também, que o príncipe era tão vulnerável quanto os outros. Mesmo que possuísse o coração de um herói, sua alma era tão frágil e sussurrante quanto as das criaturas do mundo

Um suspiro desanimado escapou de sua boca.

— Um dia, o pai da Morte, o Tempo, finalmente descobriu o que se passava. Na minha opinião, até demorou tempo demais para descobrir. Se fosse eu, tinha reparado em dois dias, e para punir sua fi... — Antes que eu pudesse finalizar, uma senhora deitada ao lado da cama de meu irmão gritou me interrompendo.

— TEM GENTE TENTANDO REPOUSAR AQUI, ISTO É UM HOSPITAL!

O ambiente bege de paredes descascadas e cheiro de plástico confirmava seu protesto. Na verdade, hospital era um jeito gentil de descrever aquele lugar deprimente e detonado pelo tempo e falta de investimento, sem falar do cheiro nojento de esgoto e das manchas velhas de sangue seco nos cobertores.

A única mudança nas últimas semanas havia sido a troca das lâmpadas, que supostamente trariam um ar de conforto e calor ao ambiente. Eu diria que a nova fria luminosidade assinalava ainda mais os distratos locais e a pobreza.

— Desculpe, senhora. — Agarrei a ponta de uma cortina verde-piscina que servia como divisória entre as camas e puxei, reconquistando privacidade para nós dois. — Onde eu estava?

— Ia explicar como o Tempo, que se atrasou bastante em descobrir a verdade... — Joaquin ponderou alguns segundos, tamborilando os dedos gordos e apressados sobre sua manta — decidiu punir a pobre Morte — disse por fim.

— Ah! Isso mesmo. O Tempo, porém, sabia que um relacionamento entre uma da morte e um dos vivos era proibido. Então, para punir sua filha, ele a obrigou a viver como humana, enquanto forçou o príncipe a assumir a posição de guardião dos mortos e a viver preso no véu entre a vida e a morte, vigiado pelo lobo gigante para sempre.

Joaquin apertou as mãos sobre as bochechas, a boca se comprimindo numa linha murcha.

— Com pena deles, a Vida, que era irmã dela, prometeu trazer a Morte ao mundo várias vezes, para que, quando sua hora chegasse, ela pudesse reencontrar o príncipe no véu, ainda que fosse por apenas um segundo antes de reencarnar novamente.

Esperança voltou a abrilhantar seu semblante. Meu irmão era imaginativo e se entregava por completo na fantasia a cada história que eu contava. Nunca ligou muito para brinquedos ou aparatos eletrônicos, só aquilo já era suficiente para a sua felicidade.

— Mas o Tempo também era um pai triste e vingativo. Decidiu que, a cada encontro, ambos teriam de pagar um preço. Cada vez que eles se encontrassem no véu, eles iam envelhecer ainda mais, até que suas já vidas transcorridas se tornariam tão velhas que não poderia haver volta. O amor estava assim condenado. 

O Guardião dos MortosOnde histórias criam vida. Descubra agora