2. Entre os mortos, vida

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Montoya

Não demorei para regressar ao marco que distinguia El Mundo de Los Muertos e El Mundo de Los Vivos. Já era Día de Los Muertos. Não era possível que mais ninguém não tivesse notado a chegada dela. Como sempre, era excitante e avassalador, e eu não tinha a certeza, mas era certo que não podia ser mais ninguém.

Ela jurou não voltar, ignorei a voz da minha consciência.

Caminhei entre os passantes intrincados e caóticos. Por uma noite, eu ignoraria o meu dever. Eu a encontraria. Como todas as outras vezes que o fiz. O cheiro de cravos-de-defunto confundia o ar, porém não era mais indistinguível que o forte aroma da Princesa da Morte, filha do tempo e, segundo o rumor que desfilava entre as bocas dos vivos e dos mortos, a amante do príncipe amaldiçoado. Minha amante. Nossa história era tão antiga que virou lenda; eterna.

Segui o aroma, segui o rastro de luz. Amor me preenchia mais uma vez. Afastei quem quer que se colocasse em meu caminho. Não era uma oportunidade que qualificaria como decisiva, ainda assim, não a desperdiçaria. Rosella. Filha do Tempo. Aquela que me buscou entre os vivos há séculos e me concedeu a eternidade quando eu era apenas um mortal. Corri, guiando-me pelas fagulhas resistentes de luz rosa. Rosella. Princesa da Morte. A minha carcereira e a minha certeza. Amaldiçoados fomos por viver um amor proibido e renegado pelo Tempo. Não deixei que os poucos perdidos que vagavam ali fossem um impedimento. Atravessei a planície de nochebuenas velozmente. Rosella. Minha. E não minha. Há muito tempo que não a via ou sentia. Retardei os passos, sentindo o aroma próximo. Rosella. Trinquei os dentes. Não era ela.

Era uma alma humana; uma niña adormecida. Estranhamente, carregando consigo uma essência intensa como a daquela que carregava o meu coração.

Quem era ela?

O cabelo ébano e emaranhado cobria-lhe parte do rosto, me permitindo enxergar apenas o lado esquerdo das bochechas protuberantes. Era muito, muito jovem. Não devia ter mais que vinte anos. E não era Rosella. Apesar do aroma inegável de rosa-vermelha, a pele escura e o nariz de botão dispensavam qualquer rigorosa inspeção da minha parte. No entanto, quem era ela?

Sua alma não irradiava a cintilação brilhante que eu vi antes sobre nenhuma parte da extensão do corpo pequenino.

Mas ela não poderia estar aqui viva, certo?

No passado, Rosella havia descoberto uma brecha entre as regras daquele mundo: seu poder não era intransponível sob determinadas condições e poderia ser repassado para outra alma mortal. Isso a levou a enviar garotas mortais frequentemente para cá, com o intuito de que elas pudessem assumir seu lugar como Princesa da Morte, assim, talvez conseguiríamos nos livrar da maldição do Tempo, um encanto cruel que nos perpetuava exilados um do outro; eu em El Mundo De Los Muertos e ela em El Mundo De Los Vivos.

Somente éramos permitidos nos encontrar quando então Rosella morria em sua forma mortal e despertava aqui. Um encontro curto e breve que demorava anos e anos para acontecer, e que podia durar de minutos a dias antes de sua próxima reencarnação.

Eu existia ansiando por esse acontecimento, porque, embora preso nesta terra inalterada, eu a amava. Pelo menos, era como justificava a minha ansiedade.

Contudo, após ver tantas das garotas enviadas por Rosella — Nina, Stella, Rosamund, entre outras — serem brutalmente destruídas pela crueldade oculta, pela morte precoce e por decisões mesquinhas, exigi-lhe em nosso último encontro que desistisse desse plano, que buscássemos outra solução, mas que não voltasse a sacrificar inocentes.

Era verdade que eu não costumava me utilizar de métodos convencionais para cumprir minha função como Guardião dos mortos, porém, eu era um príncipe de princípios. Princípios que a maioria desses imbecis quase me obrigava a quebrar, mas que eu — com uma absurda paciência — não os descumpria. E isso incluía proteger inocentes.

O Guardião dos MortosOnde histórias criam vida. Descubra agora