10. Manhã assombrada

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O odor quente e úmido era, de longe, o que menos me incomodava naquele antro de gigantes.

Assombrados pela névoa densa, Paco, o príncipe e eu atravessamos a ponte de choupo torta e decadente em silêncio. Poucas vezes eu me atrevi a erguer os olhos e espiar o horizonte arroxeado. Em duas delas, assimilei a silhueta gigante de uma fera que não devia ter menos de vinte metros. Seus chifres curvilíneos se alongavam até o que eu julgava serem suas asas, e sua cabeça lembrava a de um carneiro; seu corpo, entretanto, era reptiliano. Eu sentia a criatura nos espreitar, ainda que distante. O príncipe me disse que não era devido a bestas como aquela que o lugar recebia seu nome e foi a partir desse ponto que desisti de alçar o olhar, limitando-o aos meus pés.

As sombras do lugar ditavam que não havia garantia de sobrevivência naquela esfera vil. Morte rastejava ali, sobre os poros da minha pele, na atmosfera quieta e nevoenta, nos tons sóbrios de terra, tudo quieto e mórbido. A história contada por minha abuela não era apenas história, era a realidade diante dos meus olhos.E eu ainda não tinha noção disso, mas a Tierra de Los Condenados deixaria em mim marcas que jamais viriam a sumir.

Algumas horas antes, Montoya não poupou fôlego ao me acordar com gritos e batidas violentas na porta:

NIÑA, VOCÊ TEM CINCO MINUTOS PARA SAIR E NOS ENCONTRAR NO SALÃO DE JANTAR! — Seu punho massacrou a porta, fazendo um barulho estrondoso. Rolei da cama e caí no chão por conta do susto que levei. Ele não brincou quando disse que não tolerava atrasos, mal sabia que falou justamente com a garota que nunca conseguia ser pontual.

Eu não sentiria falta de sua indelicadeza. Toda vez que me irritasse, eu aumentaria essa lista e a deixaria como um lembrete constante em minha mente até me convencer de que não iria sentir falta dele.

Alguns raios de luz esgueiraram-se pelas frestas da pequena janela do banheiro e espalharam-se sobre o chão. Fagulhas rosadas piscavam no piso gelado, desfazendo-se em pólen iluminado. Magia, como aquela que fez os pratos sumirem no jantar, ou a que curou o ombro de Montoya. A magia do Mundo de Los Muertos parecia ser inofensiva e limitada igual ao que li em contos de fadas, mas, depois de ver o preço que aqui se pagava por ela, era melhor que eu não a subestimasse.

Espelho e fumaça, as palavras de Montoya passaram a ecoar na minha mente toda vez que vislumbrava algo como aquilo. Qualquer coisa que lembrasse beleza era apenas uma ilusão, e o que sugerisse perigo era só ameaça. Mas eu deveria sempre permanecer atenta. Será que foi isso o que ele quis dizer?

Suspirei.

Quando despertei neste mundo, minha mochila não estava comigo, o que significava que o meu celular também não. Então eu estava estranhando a ausência de um despertador manual. Além de que, sempre que eu acordava, a primeira coisa que costumava fazer era checar se havia alguma mensagem do hospital referente a Joaquin, porém agora eu só podia contar com a proteção divina sobre sua vida.

Sentei na beirada da cama. Pensei em meu irmão. Ele não receberia minha visita, nem me contaria como foi seu dia. Joaquin nunca confiou em estranhos e sempre foi sentimental demais, ele provavelmente deveria estar se sentindo abandonado.

Joaquin... Estou voltando, Joaquin. Eu prometo.

Ainda assim, eu não sei de onde tiraria forças para embarcar numa jornada perigosa. Talvez da esperança de revê-lo.

Na noite passada, dormi muito pouco, como Montoya previu.

Sonhei com a estátua que vi no cemitério. Um anjo mórbido e divino em cada detalhe, quase igual aos que enfeitavam o pátio da torre do príncipe, tão perfeitamente lapidada que parecia viva ao me encarar. Seus olhos choravam lágrimas reais e as mãos despedaçaram-se até virar pó. Eu deveria ter notado que escultores jamais conseguiriam realizar um feito como aquele. No entanto, foi mais que um sonho, foi um aviso da pessoa que me enviou a este mundo.

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