O laranja mantinha-se vivo no céu, estabelecendo um novo amanhecer. Se eu adormeci, deve ter sido por um minuto, a conversa do dia anterior me recordou um momento não muito bom da minha infância.
Quando eu era criança, abuela brigava comigo sempre que eu me atrasava para chegar em casa. Ela avisava que as crianças sumiam o tempo todo e que, se eu não fosse atenta, jamais voltaria a vê-la. Eu nunca me importei muito com suas palavras até o dia em que o retrato de minha amiga Glória, uma garota baixinha e dentuça que trançava meu cabelo, começou a ser espalhado pela cidade como desaparecida. Nunca soube o que aconteceu com Glória, mas decidi que protegeria e cuidaria melhor de Joaquin, para que o mesmo não acontecesse.
Enquanto Tondra voava, reprisei algumas vezes o rosto dela. As chances eram pequenas e Glória poderia estar viva, no entanto, eu não conseguia parar de pensar que estava com mais medo de encontrá-la no Hogar do que o contrário.
Tondra percebeu o meu nervosismo e sugeriu que eu comesse algo antes de começar o processo de aterrissagem, contudo, dadas as minhas opções, eu não fiz mais que encarar o meu almoço com um olhar morto de desdém. Meu estômago precisava de uma refeição de verdade, estava quase há uma semana comendo sanduíches, e essa coisa de ser uma heroína e enfrentar Panzudos era um enorme motivador de apetite.
Eva, se prepare...
Me contentei com uma maçã conforme ele pousou próximo a uma floresta de pinheiros. Eles eram altos e afunilados, ocupando quase todo o espaço. Corvos grasnaram ao longe no segundo que chegamos.
Daqui terá de partir sozinha, Eva. Eu não consigo seguir adiante por causa do espaço que minhas asas ocupam.
Assenti com firmeza, mas não fui convincente, meu lábio inferior tremia.
— Entendo, Tondra. — Fiquei parada alguns segundos, tentada a não descer. Infelizmente não era uma opção. — Tome cuidado e obrigada por me trazer. Volto logo. — Assim que escorreguei do torso do alebrije, afaguei sua cabeça. Seu olhar profundo me esquadrinhava, um lampejo de medo arrefeceu suas orbes.
Eva, o perigo a espera. Este Panzudo não é como o primeiro. Consigo sentir as auras abundantes neste lugar, você precisa ser atenta e cautelosa...
— Eu serei. Te vejo em breve, Tondra. — Assenti mais uma vez para o pássaro-trovão e progredi para o interior da floresta.
Queria que estivesse errado, pensei ao entrar no lugar.
Ondas de arrepios me atingiam a todo momento pelo caminho gélido. Folhas farfalhavam sob os meus pés, secas e pouco pigmentadas, esfarelando fragilmente. O grasnar dos corvos, tal como sua presença, aumentava de uma forma nada natural. Eu me embrenhava cada vez mais no coração da floresta e eles continuavam a se acumular.
Tondra me disse que eu não me perderia porque o caminho era sinalizado depois de vinte minutos, mas eu não precisava ter medo de ficar sozinha. Bem, era difícil me sentir sozinha enquanto os olhos pretos das aves resguardavam minhas laterais, sempre mirando na espada que carregava atada na mochila. Eu ainda não havia usado a arma e esperava que não fosse necessário.
Não muito longe dali, encontrei o sinal mencionado por Tondra: havia cabeças de bonecas em espetos marcando uma trilha e um cheiro de animal morto apodrecendo no ar. Que maravilha. Trilhava me sentindo duplamente vigiada, pelos corvos e pelas cabeças de bonecas.
Depois de sei lá quanto tempo andando, ouvi barulho de cascos entre as árvores e jurei ter visto a silhueta do alce que avistei perto das rosas de Lily Rose na folhagem, mas não tive como confirmar, uma vez que um sinal gigante de madeira entrou em meu campo de visão.
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O Guardião dos Mortos
Fantasy🏆 VENCEDOR DO WATTYS 2021 🏆 Após rezar para uma tumba abandonada no Día de los Muertos, a jovem gentil e destemida Eva Fuentes, é transportada a um plano mágico, fantástico e sombrio, o famigerado Mundo de los Muertos, onde ela precisará, com a aj...