4. Um trio improvável

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Montoya

Seus passos eram delicados e baixos, como se andasse nas pontas dos pés no armazém silencioso. À primeira vista, Ajal não se encontrava no balcão, então me encostei sobre uma das paredes corroídas e vigiei a niña enquanto se encantava pelas memórias espalhadas. Sua postura desinteressada insinuava que não iria se arriscar a tocar em nada, o que era excelente, afinal tudo era amaldiçoado naquele lugar. Estátua de gato? Amaldiçoada. Violino? Alerta de maldição. Seis bonecas-noivas? Um ao lado da outra. A morte nunca fez ninguém tão bela quanto elas. Talvez só Rosella. Malditas também. Prateleiras cheias de tralhas? Talvez apenas lixo acumulado pelo velho Ajal, mas era melhor não subestimar.

A luz que emanava da silhueta de Eva arrefeceu gradualmente, e já não me sentia tão compelido. Mas não consegui encontrar uma lógica razoável para explicar como meu corpo involuntariamente era subjugado por ela. O sentimento era tão... Pare. Alisei meu rosto com o palmo traiçoeiro e inspirei o ar com força. Chega de pensar nisso.

Olhei novamente para o balcão e nada. Pensar em não pensar na Eva me fazia pensar ainda mais nela. Era um ciclo infinito e enlouquecedor. Espionei o balcão e nada ainda do Ajal. Olhei para a cima e contei as teias de aranha acumuladas, até porque se olhasse para Eva, voltaria a pensar nela, e esse não era o meu plano. Em teoria, deveria ser mais fácil ignorar a presença dela nos meus momentos de distração, não o oposto. Me concentrei em contar as prateleiras então. Infeliz descuido, pois fiquei tão absorto em meus pensamentos — aqueles que consistiam em não pensar nela — que não vi o quão Eva estava hipnotizada pelo quadro de La Catrina.

Uma pintura mágica que escondia seus pensamentos mais melancólicos do Tempo. Não era amaldiçoada, contudo, poderia acarretar a atenção indevida da dama da morte. Eva fez menção de tocá-la e eu tive de intervir. Devia ter previsto que ela era do tipo que se os problemas não vêm até ela, ela vai até os problemas. Frustrei sua tentativa de tocar a pintura ao segurar firmemente seu pulso entre meus dedos. Um formigamento sútil despontou.

— Nunca te disseram que a curiosidade matou o gato, Eva? — Parei a centímetros e avisei num murmúrio próximo ao seu ouvido. Ainda detinha seu braço fino sobre meu aperto. Não conseguia soltá-la. Era quente e macia. Havia algo doce nela. Um tipo de magnetismo que eu não me recordava de ter esbarrado antes. Por que a sua alma era tão suave? Não me deixava intoxicado como a de Rosella, era mais... terna. Droga. Se o inferno queimasse à minha volta naquele momento, não me seria perceptível. Mil vezes droga.

— Si-sim, mas aprendi que a satisfação o trouxe de volta — Eva retrucou, intimidada. Seus músculos estavam rígidos e a respiração baixa e contida, a audácia da resposta me espantou, entretanto. E me trouxe de volta. Eu não consegui controlar o riso alto. Essa niña era lamentavelmente atrevida.

Meus dedos ainda não queriam afrouxar o contato entre nossas peles. Por sorte, outra alma se manifestou no recinto: Ajal. Então, prometi a mim mesmo que apenas a conduziria até ele e não voltaria a tocá-la se não fosse imprescindível. Essa distração estava se tornando arriscada.

Aconchegado na velha poltrona, Ajal afinava o costumeiro banjo. Eu quase podia jurar ser por influência dele que tantos caçadores tocavam instrumentos. Talvez não passasse de uma imensa coincidência onde vários idiotas compartilhavam a mesma afinidade aborrecida, mas ainda que fosse o caso, eu o culparia igualmente. E nem era como se eu odiasse música. Não. O que eu odiava era como nenhum deles me permitia apreciar o silêncio. Nunca.

O velho dedilhava exaustivamente o banjo enquanto um sorriso ordinário se formava no canto da boca ao nos ver. Ele sabia que eu a traria. Certo, eu iria direto ao ponto, sem rodeios.

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