RICARDO

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- Quando me procura, é porque temos problemas – estou numa sala lustrada e encerada, assim como a careca do reitor Bardelli, que me atendia nesse exato momento. Usa um paletó apertado demais para sua barriga redonda e acena para que eu me sente.

Ele se senta atrás da mesa de madeira polida e cruza os braços.

- Você já foi mais bonito – ele zomba, e imagino que a julgar pelos últimos acontecimentos minha cara estava péssima.

- Problemas – digo.

- É sobre isso que quer conversar? – remexo-me na cadeira.

- Sim – sou prático.

- Então comece.

- Quero pedir uma licença.

Ele se remexe na cadeira.

- Por quê? – franze os cenhos, preocupado.

- Problemas pessoais. Do jeito que as coisas estão, eu não vou pode

r me dedicar aos alunos, não como eles merecem.

- Mas estamos no meio de um semestre, Ricardo...

- Encontrarão um substituto – interrompo - Tenho certeza que sim.

- Você tem responsabilidades com seus alunos. Não pode simplesmente abandoná-los.

- É exatamente por isso que quero deixar a escola, porque não quero ganhar dinheiro com a bunda relaxada na cadeira enquanto eles jogam aviões de papel pro alto.

- É só não deixar que os faça – ele insiste, como se não soubesse como funciona na prática, como se não tivesse dedicado 25 anos da própria vida a dar aulas.

- Olha – fecho os olhos, pouco irritado, porque entendo seu lado, na verdade – Eu não posso continuar a ministrar as aulas. Os alunos merecem alguém que se dedique a eles.

- Você é um dos nossos melhores professores... – seu tom de voz áspero parece estar enfrentando um luto.

- Não estou dizendo que isso vá durar para sempre, só que... – seleciono as palavras – Preciso de tempo até resolver... a minha vida. Depois eu volto, se ainda der tempo.

Ele pensa por um instante, com os dedos no queixo.

- Tem certeza? – ele estreita os olhos, esperando que eu mude de escolha.

- Sim, tenho – assinto, para sua infelicidade.

- Não há alternativas? – sorrio diante sua insistência.

- Infelizmente, preciso fazer isso.

- Então, tudo bem – ele finalmente concorda – Talvez seja melhor tirar uma licença até que tudo se resolva.

Levanto, grato, e ele faz o mesmo, entendendo a mão.

- Passe na administração mais tarde, redigirei os documentos e farei aprovação do pedido.

Aperto sua mão e ele se senta, mexendo em papéis organizados sobre a mesa.

- Você é um bom professor, Ricardo, vamos sentir sua falta.

Comprimo os lábios num sorriso cansado e saio da sala.

CONHECI VICTORIAN NA FACULDADE quando ainda éramos jovens. Víamo-nos todos os dias, porém nunca havíamos tido coragem de se aproximar o suficiente para trocar algumas palavras. Eram apenas olhares e sorrisos envergonhados, seguido das piadinhas de suas amigas de classe.

Certo dia, em uma loja de roupas no centro da cidade, procurando calças novas, por coincidência, Victorian estava lá, arrumando meias em uma prateleira. Essa foi a primeira vez que nos falamos, talvez pela obrigação da sua função, talvez porque ela insistiu para suas colegas de trabalho para que pudesse me atender como pretexto para paquera. E aí, depois de eu fazer o cartão da loja só para que ela descobrisse meu telefone, marcamos um primeiro encontro.

Nosso amor certamente não foi à primeira vista, mas com certeza fora a primeiro diálogo. Não nos importamos com horário, não nos importamos com nossas famílias e nem se quer em ir embora. O que importava tudo isso sentados à mesa de uma pizzaria aconchegante do bairro, sob a luz amarela e cheiro de queijo derretido? O que importava tudo isso debaixo da noite estrelada, sentados ao relento naquela calçada encardida enquanto tomávamos uma garrafa de vinho barato? O tempo naqueles momentos pareciam virar ao nosso favor e minutos se tornavam horas. Os abraços e beijos sobre o lençol logo trouxe Emily, mas nem o desespero de gerar uma nova vida nos apavorou. Era a chance de termos para sempre as nossas trocas de amor, diálogo e sonhos.

Depois de quinze anos, acabou.

Eu sei, nenhum homem é fiel, isso é fato. Todo homem esconde dentro de si uma infidelidade. Sempre terá o momento em que você fechará os olhos e verá uma bela atriz ao invés da mulher com quem está deitada com você. Não digo que, diretamente, um homem sairá de sua casa e irá atrás de uma mulher nas ruas da cidade, mas, em pensamento, durante uma noite de sexo, você pensará na Mila Kunis, por exemplo.

Mas não desanime. Mulheres muitas vezes também não são fiéis. Contudo os homens possuem dentro de si um instinto carnívoro, e, apesar de amar suas respectivas parceiras, querem nutrir a lascívia de uma paixão calorosa. O homem trai, mas ama, e é isso que quero te dizer.

Lembro das primeiras traições, quando me envolvia com as minhas alunas.

Não posso falar sobre isso.

Se eu olhar para trás...

Com meu celular, busco algum sinal de internet, faço uma busca no Google e encontro um evento beneficente para a próxima semana. Um evento de Victorian.

As palavras cruéis dela voltaram junto com o ódio em meu peito.

Apodreça no inferno, ela disse.

Pensei por um momento.

Vendi meu carro para o dono de uma concessionária e comprei um trailer já usado e velho com metade do dinheiro que ganhei. O dono disse que havia uma mulher alugando um pequeno espaço em sua garagem ali perto e então consegui alugar o espaço por durante dois meses.

Deito na pequena cama que range e penso nos quinze anos de passado pesaroso de casamento. Um casamento desgastante e desumano.

Leilão de Artes e Vinhos

Exposição e degustação a partir das 19h

Leilão a partir das 21h

Decido.

Se for para apodrecer no inferno, eu trarei Victorian comigo.

Não olhe para trásOnde histórias criam vida. Descubra agora