RICARDO

8 3 0
                                    


Em dados momentos alguns de nós precisa perceber que brigas numa relação só são saudáveis até certo ponto. E em momentos como esses que eu tenho vivido, saudável é a última coisa que as define.

Hoje percebi que minha família está morta.

Filhos mortos. Com olheiras fundas e olhos cansados, saem de casa para irem à escola com tristeza.

Esposa morta, que insatisfeita, me encara com olhos vazios e bebe pelo menos cinco doses de Vodca por dia.

E eu, morto, que tento salvar minha falida relação em prol dos meus interesses.

Pior que os comentários maldosos feitos pelas tietes e burguesia que hora frequentam os mesmos eventos que nós e hora nos chama para encher seus próprios eventos de quadros caros e vinho seco, é ter de lidar com a reação dos meus filhos a esses comentários.

Para se ter ideia, chegaram a inventar que troquei Victorian para ficar com meu vizinho.

E nós nem temos vizinho.

Pouco a pouco, a casa que antes tinha cheiro de pão de queijo pela manhã, café fresco e chocolate quente – para Randy -, agora não tinha cheiro. Não tinha cor, e parecia estar prestes a ruir.

Em noites em que as discussões atingiam patamares mais altos do que eu gostaria que atingissem, eu sonhava com a casa caindo sobre mim e esmagando meu corpo por completo, deixando apenas o coração em funcionamento, doendo, pulsando, se culpando, deixando-me sofrer da forma como mereço.

Nas madrugadas não era apenas a coruja piando que me impedia de dormir ao lado do corpo quente de Victorian. Minha mulher por obrigação. A culpa também me impedia de dormir, vindo como uma sombra escarlate escorrendo das altas janelas e correndo até a cama, me sufocando. As últimas noites de sono haviam sido péssimas, infelizes.

Victorian nunca foi o exemplo de bela, recatada e do lar. Espirituosa, dona de si, geniosa, nunca abaixou a bola e mesmo quando errada, nunca saia por baixo. A riqueza que conquistara depois da adolescência a fez se sentir superior e capaz de tudo, fazendo o possível e o impossível para proteger quem ama.

Certa vez, no jardim de infância, Randy havia quebrado um dos brinquedos da sala de aula e o escondeu em seu bolso para que ninguém visse. Victorian, quando foi busca-lo, ouviu ele contar, então ela pegou o brinquedo, o colocou na bolsa e deixou quinze reais sobre uma cadeira, sem contar a ninguém que aquele era o pagamento pelo brinquedo quebrado.

Isso, claro, me fazia duvidar do que ela era capaz.

De mentir para mim, talvez?

Não tenho direito de cobra-la.

São duas da manhã e a observo dormir. Geralmente, de guarda sempre pronta, era impossível ver Victorian como ela realmente é, mas dormindo ela não podia fingir, e ela se entregava, demonstrando a fragilidade do seu interior.

Tento dormir um pouco. E consigo pelas próximas três horas, quando acordo por instinto três minutos antes de o despertador tocar.

Victorian ainda dorme na mesma posição, observo-a por um tempo para ter certeza que ela estava bem.

Coloco uma calça fina, camiseta e o tênis de corrida. Preciso correr para oxigenar a alma. E é isso que faço até ver os primeiros raios de sol surgirem através da neblina gelada.

Coloco o uniforme de educação física e desço para o café da manhã. Escuto o chuveiro ligar no andar de cima: Victorian acordou.

Como tem sido, as conversas se resumem a:

- Bom dia.

- Bom dia.

- Bom dia.

- Nossa, como está frio!

- Tá mesmo...

Idiota.

Por que cometer tantos erros, idiota?

A voz continua.

Quando chegamos à escola, eles descem do carro e não escutam meu desejo de "Boa aula". Respirando fundo, estaciono o carro na parte lateral do prédio escolar, reservado aos professores. Olho para o relógio. Ótimo, ainda tenho um tempo. Encosto a cabeça no volante e fecho os olhos, pensando.

Quero chorar, mas as lágrimas não saem.

Como todos nós ficamos tão tristes de repente?

Não olhe para trásOnde histórias criam vida. Descubra agora