Em dados momentos alguns de nós precisa perceber que brigas numa relação só são saudáveis até certo ponto. E em momentos como esses que eu tenho vivido, saudável é a última coisa que as define.
Hoje percebi que minha família está morta.
Filhos mortos. Com olheiras fundas e olhos cansados, saem de casa para irem à escola com tristeza.
Esposa morta, que insatisfeita, me encara com olhos vazios e bebe pelo menos cinco doses de Vodca por dia.
E eu, morto, que tento salvar minha falida relação em prol dos meus interesses.
Pior que os comentários maldosos feitos pelas tietes e burguesia que hora frequentam os mesmos eventos que nós e hora nos chama para encher seus próprios eventos de quadros caros e vinho seco, é ter de lidar com a reação dos meus filhos a esses comentários.
Para se ter ideia, chegaram a inventar que troquei Victorian para ficar com meu vizinho.
E nós nem temos vizinho.
Pouco a pouco, a casa que antes tinha cheiro de pão de queijo pela manhã, café fresco e chocolate quente – para Randy -, agora não tinha cheiro. Não tinha cor, e parecia estar prestes a ruir.
Em noites em que as discussões atingiam patamares mais altos do que eu gostaria que atingissem, eu sonhava com a casa caindo sobre mim e esmagando meu corpo por completo, deixando apenas o coração em funcionamento, doendo, pulsando, se culpando, deixando-me sofrer da forma como mereço.
Nas madrugadas não era apenas a coruja piando que me impedia de dormir ao lado do corpo quente de Victorian. Minha mulher por obrigação. A culpa também me impedia de dormir, vindo como uma sombra escarlate escorrendo das altas janelas e correndo até a cama, me sufocando. As últimas noites de sono haviam sido péssimas, infelizes.
Victorian nunca foi o exemplo de bela, recatada e do lar. Espirituosa, dona de si, geniosa, nunca abaixou a bola e mesmo quando errada, nunca saia por baixo. A riqueza que conquistara depois da adolescência a fez se sentir superior e capaz de tudo, fazendo o possível e o impossível para proteger quem ama.
Certa vez, no jardim de infância, Randy havia quebrado um dos brinquedos da sala de aula e o escondeu em seu bolso para que ninguém visse. Victorian, quando foi busca-lo, ouviu ele contar, então ela pegou o brinquedo, o colocou na bolsa e deixou quinze reais sobre uma cadeira, sem contar a ninguém que aquele era o pagamento pelo brinquedo quebrado.
Isso, claro, me fazia duvidar do que ela era capaz.
De mentir para mim, talvez?
Não tenho direito de cobra-la.
São duas da manhã e a observo dormir. Geralmente, de guarda sempre pronta, era impossível ver Victorian como ela realmente é, mas dormindo ela não podia fingir, e ela se entregava, demonstrando a fragilidade do seu interior.
Tento dormir um pouco. E consigo pelas próximas três horas, quando acordo por instinto três minutos antes de o despertador tocar.
Victorian ainda dorme na mesma posição, observo-a por um tempo para ter certeza que ela estava bem.
Coloco uma calça fina, camiseta e o tênis de corrida. Preciso correr para oxigenar a alma. E é isso que faço até ver os primeiros raios de sol surgirem através da neblina gelada.
Coloco o uniforme de educação física e desço para o café da manhã. Escuto o chuveiro ligar no andar de cima: Victorian acordou.
Como tem sido, as conversas se resumem a:
- Bom dia.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Nossa, como está frio!
- Tá mesmo...
Idiota.
Por que cometer tantos erros, idiota?
A voz continua.
Quando chegamos à escola, eles descem do carro e não escutam meu desejo de "Boa aula". Respirando fundo, estaciono o carro na parte lateral do prédio escolar, reservado aos professores. Olho para o relógio. Ótimo, ainda tenho um tempo. Encosto a cabeça no volante e fecho os olhos, pensando.
Quero chorar, mas as lágrimas não saem.
Como todos nós ficamos tão tristes de repente?
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Não olhe para trás
Mystery / ThrillerEmily Alencar passa por um grande trauma: sua melhor amiga, Jeniffer, fora estuprada e cruelmente assassinada logo após uma briga entre as duas. Os assassinos fugiram sem deixar rastros, mas parece que esse golpe deteriorou não só à Emily, mas toda...