EMILY

4 2 0
                                    

Cheguei à casa de Jeniffer minutos depois, já com as lágrimas trancadas dentro de mim.

Na frente, um caminhão estava estacionado com as portas traseiras abertas. Dois homens fortes, levavam os móveis da casa para dentro do caminhão. Meu peito se apertou. Sua mãe estava saindo da cidade?

Caminhei pela entrada, desviando de algumas coisas que estavam espalhadas por ali. Uma caixa grande com pertences de Jeniffer estava em um canto do jardim, encostada à cerca. Sei disso por conta do seu nome escrito à canetão na lateral. Por um instante a vi ali, revirando tudo em busca de alguma coisa. Fechei os olhos. Quando abri, ela havia sumido. A ideia perturbadora de Jeniffer aparecer gritando pedindo para colocarem as coisas de novo dentro da casa porque tudo fora uma grande brincadeira me aterrorizou. Me esperançou.

Lentamente, acostumada por quase ser parte da família, entro na casa já vazia. Olho para os lados, não vejo ninguém.

Subo as escadas e paro em frente ao quarto de Jeniffer. Era uma garota tão boa... Por que ela, Deus?

Escuto alguns resmungos vindos de dentro e abro a porta calmamente. Ester, mãe de Jeniffer, estava lá, ajoelhada em frente a uma casa de bonecas. Ao seu lado, uma caixa com outras porções de coisas de sua filha. Ela me escuta, mas não se vira. Então decido aproveitar esse tempo que tenho de silêncio para olhar o quarto que estive tantas outras vezes na vida.

As paredes são brancas e fúcsia, sua cama box de casal está sem seus forros brancos e pretos, o que era totalmente oposto às paredes. As prateleiras brancas presas ao longo das paredes também já estão vazias, sem a coleção assustadora de bonecas que a garota colecionava. Seus livros também já deviam estar nas caixas, porque não estavam mais ali.

Já não era mais um quarto vivo.

Como tudo naquela casa.

Como ela mesma.

- Eu às vezes me pego pensando em quantas coisas mágicas já fiz aqui – comento, apreensiva, me aproximando da mulher debruçada sobre a casa rosa de bonecas.

Saber que Ester revirava as coisas da filha em busca de amenizar a tristeza fez meus pelos se arrepiarem e a garganta fechar um pouco. Tento ignorar.

- Ela era tão pequena e frágil, anos antes, Emily – Ester tem a voz tão triste que um nó se instala em meu peito.

- E obediente – brinco, rindo um pouco.

- Era mesmo – vejo um vislumbre de sorriso no canto da sua boca, todavia, apesar do esforço, ele vai embora tão rápido quanto veio.

Eu sento no chão pouco empoeirado, respirando o ar adocicado do cômodo.

- Você está bem? – pergunto, na tentativa de me aproximar dela, mas claro que não estava nada bem.

Ester moveu a boca na tentativa falha de mentir.

- Não se preocupe, querida, sou mais forte do que imagina. – ela me olha com os olhos marejados, força um sorriso e seca uma lágrima com a palma das mãos. Que ela era forte, bem... isso não era de todo verdade.

Jeniffer me contara uma vez que, quando sua mãe era adolescente, namorou um homem que a engravidou. Quando ele descobriu, não aceitou muito bem, e, incapaz de aguentar a situação, tomou duas cartelas de remédios na tentativa de matar ela e o bebê.

A criança morreu. Ela ficou.

- Vai embora para onde? – pergunto, retornando à conversa.

- Para qualquer lugar longe dessa cidade. – Seus olhos parecem vazios, fixos na lembrança de sua menininha – Minha filha foi estuprada e morta dias atrás e as pessoas me olham com pena. E sei que se passará um mês e isso que aconteceu vai ser só um fato e eles irão falar comigo com tranquilidade como se nada tivesse acontecido – uma lágrima escorre e cai no teto rosa da casinha de brinquedo. – Se eu ficar aqui eu não vou conseguir superar isso – ela termina.

Visivelmente abatida, eu afirmo:

- Não foi sua culpa. Não foi culpa de ninguém – aproximo meu rosto, colocando minha mão em seus ombros.

A mulher tinha o cabelo castanho, a pele branca pintalgada de sardas. Um sorriso tão belo quanto o da filha.

- Sim, foi, sim. – Ela balança a cabeça, com rancor, segurando uma boneca réplica de Jeniffer nas mãos. – Eu sou mãe dela! Eu sou a mãe dela e eu não consegui proteger minha filha!

Eu abaixo a cabeça, uma lágrima molhando meu rosto.

- Não tinha nada que a gente pudesse fazer – quando digo isso, me arrependo, porque eu sabia e não fiz nada além de apontar o dedo na cara dela. Sinto-me idiota e mentirosa.

Idiota.

Mentirosa.

Mentirosa.

Mentirosa.

- E você, como está? – Ela me olha com ternura.

Mas eu não sabia responder. Às vezes era como se com sua morte ela tivesse levado também todos os meus sentimentos.

- Tentando lidar – abaixo a cabeça, limpando uma lágrima.

- Tenho orgulho de você, Emily – levanto a cabeça e a olho. – Saiba que te amo como uma filha, e você é linda, forte, saudável – continuou desabafando – É saudável, sim, apesar da quantidade de sanduiches que você comia com a Jeni. – Ela ri, e eu também – Mas minha filha tomou uma atitude que corta o meu coração. Sei que superarei isso quando as pessoas que fizeram isso com ela estiverem presas. Eu sei que eles vão pagar por tudo que fizeram.

- Eles vão. Vão pagar por tudo que fizeram. Vai tudo acabar bem – trocamos um abraço e ela beija minha bochecha corada. Ela ainda tinha o mesmo cheiro de baunilha de sempre, como os bolos que ela preparava para o aniversário de Jeni.

Levanto-me e ando pelo quarto com um olhar perdido, enquanto Ester se vira para o lado para mexer na caixa, emocionada com cada item que pegava e trazia ao peito.

- Quero que você fique com algumas coisas dela. – diz, mas sem me olhar. Eu me viro.

- Não posso...

- Eu preciso que você fique – ela me interrompe – Levarei suas bonecas, gosto de lembrar dela olhando para elas. Mas, seus livros, seu diário... Quero que você os leve. Hoje.

- O diário dela? Dona Ester, você deve ficar com ele. Se você ler, pode ser que seja útil...

- Não, não posso. Tenho certeza que nada que está aqui ela gostaria que eu soubesse. Leve, se quiser leia, mas não o deixe aqui.

Eu assinto contra minha vontade.

- Está em uma caixa lá em baixo, no quintal. Pode pegar algumas coisas que caibam na sua bolsa, e o resto eu mando depois.

- Tudo bem. Claro!

Olho para a caixa e mexo no que está por cima. Pego um punhado de cartas. Abro a primeira e puxo um papel de dentro.

ME DESCULPA

- O que é isso? – pergunto, de cenho franzido e curiosa.

- Achei mais de quinze cartas como essa no armário dela na escola – ela dá de ombros e funga.

Na escola? Franzo o cenho. Quem e por que estaria pedindo desculpa? Por quê?

Guardo o papel no envelope e a devolvo com as demais na caixa.

- Vamos, vou preparar um chá pra gente – ela se levanta e me indica a porta.

VOU PARA O LADO de fora da casa. O sol parece querer limpar e me aquecer do frio da casa.

Paro em frente à caixa de papelão com o nome de Jeniffer, suas coisas organizadas todas lá dentro. Ergo a mão e pego de lá três livros, seus favoritos, os quais ela me forçou ler um bocado de vezes e os coloco dentro da bolsa. Depois pego um caderno negro de capa dura com uma caneta presa por uma fita. Seu diário.

Olho para trás para me certificar de que Ester não estava atrás de mim. Quando garanto que estou sozinha, abro e leio a primeira frase.

Hoje, pela primeira vez, fiquei com um homem mais velho. O meu professor de educação física.

Não olhe para trásOnde histórias criam vida. Descubra agora