RICARDO

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Desço do carro e caminho para a escola. Cumprimento alguns alunos na entrada e desvio o olhar curioso de outros. Olhares tão... sedentos e corajosos.

Entro na sala dos professores e sou recepcionado com educados desejos de bom dia. Retribuo e caminho para a máquina de café. Preciso disso para continuar.

Bate o primeiro sinal e os alunos já me esperam na quadra de futebol.

- Nossa, ele tá um gato hoje! – escuto de um lado da quadra.

Ignoro. Tenho que ignorar.

Varro o olhar pela quadra e vejo Emily no canto da arquibancada. Seu olhar triste fita o chão e provavelmente ela nem me viu chegar. Victoria e eu insistimos para ela dar um tempo na escola, dar um tempo para si mesma, descansar, digerir tudo que passou nos últimos dias – sabemos que a escola não é o ambiente mais saudável para lidar com um luto –, mas ela se negou, exatamente como sua mãe faria se estivesse na mesma situação.

Termino as aulas do dia. Nem mesmo no exercício da atividade que mais me trazia prazer no passado, hoje, é capaz de me animar. Entro no carro, dessa vez sem a companhia dos filhos. Abro as janelas e dou partida. O sol alaranjado pinta o céu subindo para o topo do horizonte, e ali, por um milésimo de segundo, sinto uma pontada de alegria. Sorrio e agradeço.

Decido não ir para casa. Estaciono em frente a um bar e entro.

CHEGO EM CASA DEPOIS do jantar. A casa está vazia apesar de cheia. O silêncio toma conta, apesar de todos poderem conversar. Mas não, o silêncio não vai durar.

Não hoje.

Quando entro no quarto, Victorian está sentada em uma poltrona lateral, em uma das mãos um papel branco e na outra, uma taça, servida com vinho tinto.

- E eu achando mesmo que sua desculpa pra não terminar comigo era amor... – ela fala, amarga.

Ela não sorri, mas não parece triste. Está furiosa. Se eu concentro minha atenção no fundo dos seus olhos, enxergo até cansaço, como se, depois do dia de hoje no trabalho, ela precisasse de paz.

E nesse instante, sei que ela descobriu.

E nesse instante, sei que não está em paz.

Victorian coloca sua taça na cabeceira e se inclina, olhando o papel.

- O que você quer dizer com isso? – não posso demonstrar. Talvez ela só esteja blefando.

- Quero dizer disso – ela me estende o papel e eu o pego. Minhas pernas tremem. Como... – Você tentou guardar esse segredo de mim e teria conseguido se não por um único erro: você não sabe esconder as evidências. – Sua face transpira nojo, descrença, decepção.

Estou petrificado quando ela toma o papel da minha mão.

Droga, como sou burro!

- Eu tentei falar sobre isso... – começo, num tom de voz baixo.

- Mas não falou! – ela grita, e pela forma como me olha, sei que não está brava apenas por isso, suas dores, suas frustrações, seus cansaços estão somados – Nossos filhos estão sofrendo e a pessoa que me mandou isso daqui – ela levanta o papel mais uma vez – sabe o que fazemos, porque conseguir descobrir isso não é trabalho de alguém que quer apenas me avisar alguma coisa.

- Você acha mesmo que gosto de ver nossos filhos sofrendo e não poder fazer nada para impedir? Acha mesmo que queria esconder isso de você por tanto tempo?

- Esse é o seu problema – seu tom esnobe de sempre – Se você não sabe o que fazer para proteger nossos filhos, eu sei – ela pega sua taça.

- E como você pretende fazer isso?

Ela me encara antes de beber o resto de seu vinho.

- Limpando a sujeira.

- Eu não sei o que você quer dizer, mas antes que você comece explicar essa loucura, eu quero saber quem te enviou isso. – Tomo o papel da sua mão.

- Não sei quem enviou. Não importa. Mas você tem explicação pra isso? – ela sorri com desdém, cenho franzido de descrença – Então vamos falar sobre. Mas assim que você terminar, suba direto para o quarto e pegue tudo que é seu de lá e saia dessa casa. Se você não sumir dessa cidade até hoje à noite, eu juro que vou transformar sua vida em um inferno. E de uma coisa você pode ter certeza: eu nunca esqueço.

Não olhe para trásOnde histórias criam vida. Descubra agora