LARISSA

4 2 0
                                    

A julgar pelo silêncio, todos já dormiam, então pulo da cama e saio do meu quarto.

Desço as escadas o mais rápido que posso no escuro, e isso não era tão rápido já que eu tinha que tomar cuidado para não fazer barulho e acordar a casa toda.

Com a luz de um abajur portátil, ilumino meu caminho e seco o suor frio da minha testa, que, embora a noite estivesse fria, e meus pés congelados sob o assoalho, meu corpo se encontrava quente como meu coração que se debate dentro do peito.

Isso não era pela mesada.

Era pelo acúmulo.

Sei como pode parecer banal querer vingança do próprio pai por mesada, mas acontece que vai além disso. É por todas as vezes em que meu irmão fez merda e foi aceito. É por todas as vezes que ele foi pego vendendo drogas e meu pai aceitou que ele o fizesse. É por todas as vezes que fui mais e melhor e meu pai preferiu apostar as fichas no meu irmão e dar a ele parte da empresa.

É por ele me diminuir. Por eu me sentir a Alice após comer um bolinho até ficar tão pequena que me torno invisível aos olhos. E também ao coração.

Sei que não sou santa e que faço besteira. Sei que poderia ser uma filha mais dedicada, mais responsável, tirar notas melhoras, mas foda-se essa merda toda, não preciso disso, não quero me formar em direito, nem em Teoria da Comunicação e nem se quer ir para uma faculdade. Sei que mereço ser repreendida, mas não aceito ser passada para trás por uma porcaria de festa enquanto meu irmão ganha metade da empresa quando está fazendo sexo com três no quarto enquanto usa cocaína.

Encontrei o escritório do meu pai ao final do corredor escuro e entrei, fechando a porta silenciosamente atrás de mim. Levanto a lanterna do celular e ilumino a sala, esperando não encontrar meu pai ali, sentado, sabendo que, depois de ter tirado de mim tantas oportunidades anteriores, eu faria algo para prejudica-lo.

Eu não era mais criança, e ele não iria me tratar como uma.

Procuro a escrivaninha, tateio-a em busca do abajur e o acendo. Olho em volta e penso o que poderia encontrar ali que me levasse a algo comprometedor do meu pai. Talvez um segundo celular para manter contato com amantes, talvez um cartão que lhe indicasse como viciado em jogos. Percebo que fiz a pergunta errada. Eu não deveria pensar no que achar, mas onde apenas procurar. Olho em volta e decido começar pelo óbvio: a gaveta. Sento em sua cadeira de couro e levo minhas mãos em busca do puxador de metal frio. Puxo-a com cuidado, mas estava trancada.

Procuro por todos os lugares onde a chave poderia estar, e só depois do que pareceu meia hora que as encontro dentro de um livro falso em uma das prateleiras.

Eu não tinha ideia do que meu pai guardava ali e com que frequência a abria. Afinal, por que a mantinha trancada? Ele vivia nessa sala para reuniões mais intimistas – e com isso quero dizer suborno, lavagem de dinheiro e qualquer coisa desse tipo que seja contra lei – ou para dias em que não havia necessidade que estivesse presente na empresa.

Rees & Tec, a empresa de tecnologia que meu pai fundou há doze anos é hoje uma das maiores do Brasil, e claro que ele é um homem ocupado, visto que é dono de uma dinastia, mas por que, diabos, gavetas de uma escrivaninha tem de estar trancadas? Pior, por que a chave de uma simples gaveta de escrivaninha que só deveria, em teoria, guardar pastas e papéis estaria escondida dentro de um livro falso? Penso, talvez, que se fosse algo importante, como dinheiro, a solução seria ainda mais simples: pegar uma quantia de dinheiro até minha mesada voltar. Afinal, eu não sei exatamente o que eu estava procurando.

Respiro profundamente e coloco a chave na pequena fechadura. Ela entra suavemente e gira com um clique de satisfação.

Puxo a gaveta que abre calmamente, contudo, o que encontro é decepcionante.

Há um grande livro com capa de couro coberto por poeira, deixando claro que estava ali tempo o suficiente para já ser parte do móvel, como se ele mantivesse aquilo com carinho ou como um santuário.

Apesar de querer fechar a gaveta e procurar em outro lugar do escritório algo realmente útil, engulo com nervosismo e tiro o pesado livro de dentro. Coloco-o sobre a escrivaninha e logo percebo que se tratava de um álbum de fotografias. Grande coisa, Larissa!

Abro-o cautelosamente e aproximo o abajur para conseguir enxergar com nitidez. A primeira foto era do meu pai, com uma roupa dos anos 80 e um sorriso satisfeito. Ao fundo, uma piscina modesta.

Viro a página e encontro outra foto, protegida pelo fino plástico do álbum, porém, dessa vez, meu pai não estava sozinho. Ele vestia um terno, e ao seu lado posa uma mulher mais velha do que ele com o braço enganchado no seu, e do lado oposto, há um homem também de terno, com ar sério, parecido como meu vô em suas fotos.

Viro a página e encontro outra foto do meu pai, dessa vez com uma garota ao seu lado, sorrindo alegremente para a câmera. Aos dez anos de idade aparentes, ela se parecia com ele e ele parecia feliz em tê-la ao seu lado.

Viro a última página e mais uma vez encontro ao lado do meu pai duas pessoas. Uma delas, a mesma garota da foto anterior, que fazia pose e sorria com educação, o outro era um homem, que só reconheci por conta do terno e ombros largos, porque a foto havia sido recortada, com um buraco no lugar onde a cabeça do homem havia estado.

Estremeço na noite silenciosa e olho por cima do ombro, sentindo subitamente uma sobra atrás de mim com uma tesoura na mão pronta para arrancar minha cabeça assim como havia feito com o homem da fotografia, porém, não havia ninguém.

Ouço um barulho no andar de cima e crendo que alguém havia acordado, tiro do álbum a foto com a cabeça do homem cortada e a coloco no bolso. Fecho o álbum e o recoloco na gaveta. A tranco e coloco a chave dentro do livro falso novamente antes de sair. Caio no corredor escuro novamente e respiro aliviada. O ar parecia menos frio ali.

Pegar a fotografia fora um ato impensado e desesperado, entretanto, eu o fiz, e não sei no que ele me ajudaria, mas eu o tinha nos bolsos, e não voltaria agora para guarda-lo.

Entro para o quarto e deito na minha cama. Talvezfosse só o sono criando alucinações, e por isso eu vi um homem parado do ladode fora, no quintal, olhando em direção à nossa casa.

Não olhe para trásOnde histórias criam vida. Descubra agora