Ás vezes, a gente acha que atingiu o fundo do terror, desiste, e mesmo assim não morre.
Os braços de Cristinne pareciam que desgrudariam de seu corpo. Além de cansados, estavam machucados, com furos de unhas afiadas. O lago era realmente grande e a neblina atrapalhava significativamente. Com pouca paciência, ela pegou um remo e bateu com força no chão do barco, acordando Emy. A mesma abriu os olhos, mas demorou para se levantar.
— Olha, eu sei que você está toda arrebentada, mas se não me ajudar vamos ficar nesse lago para sempre.
— O que? Estamos... no lago? Eu disse para você me deixar na praia, sua idiota! Eu só queria morrer quieta!
— É mas não vai. Pega esse remo e começa a remar. Seus braços não estão piores do que os meus — e mostrou os furos que o grande cão havia feito. Um rastro de sangue escorria dos ferimentos. A realidade era que ambas estavam debilitadas, mas não tinham outra escolha se não continuarem avançando.
— Que inferno — murmurou Emy.
E remaram. Cristinne viu resultado deste trabalho em equipe, já que o barco ficou mais veloz. Enquanto se ajudavam, a força, permaneceram em silencio. As aguas faziam um barulho confortante conforme mergulhavam o remo, e o lago ondulava e refletia em sua negritude as poucas luzes do céu. Cristinne olhou para cima e apertou a vista. Realmente havia luzes lá em cima. Eram pequenas e redondas. Pareciam estrelas, brilhavam como estrelas mas não eram. Uma das dezenas dali acabou dando um estouro e apagando. Algumas faíscas saíram da luz, mas jamais alcançariam as meninas, estavam muito acima delas.
— O que foi aquilo? — perguntou Cristinne.
— É normal. Elas queimam com frequência.
— As luzes... estão queimando?
— Está assim em toda parte. A cidade toda. Por isso construíram a Grande Fábrica. Você não vê os noticiários, não?
— Eu vejo... mas ultimamente não tive tempo.
— É bom que essa Fábrica resolva esse problema de energia, ou ficaremos na escuridão.
— É o meu objetivo. A fábrica é o ponto final. Preciso entrar lá — afirmou Cristinne.
— Entrar sem ser recrutada? Você é mesmo maluca.
— Eu... ah... fui recrutada sim — Mentiu — Só me perdi no caminho. Se o seu adulto não tivesse me sequestrado eu já estaria na Fábrica.
— Se perdeu no caminho, é? Pelo que eu saiba, as crianças recolhidas de um instituto são colocadas em uma vã.
— Eu... me perdi da vã.
— Isso só mostra que você já nasceu dos avessos — respondeu com tom debochado.
Cristinne não continuou a conversa. Ainda não tinha confiança suficiente para revelar a verdade. Ambas continuaram remando. Hora ou outra, Emy soltava uns gemidos de dor. Cristinne rasgou uma parte de sua camiseta velha e tapou o ferimento que sangrava em seu braço. Também ajudou Emy a limpar os ferimentos que tinha nas costas, com a agua doce do próprio lago.
— Emy... antes de me encontrar na floresta, você estava tentando fugir, não estava?
— De novo esse assunto? Eu já disse que não.
— Você não precisa mais mentir. Está aqui, agora. Conseguiu fugir — Emy não a respondeu. Parecia incomodada. Remou com mais força que o normal.
— Olha, garota, eu não sei de qual instituto você veio, mas posso dizer que é a pior criança que já educaram. Por sua culpa eu apontei uma arma para um adulto, explodi a cabeça de um animal e agora estou foragida no meio de um lago.
— Você fez tudo isso e eu sou a pior?
— E tem mais! Você é chata, persistente e se não bastasse, salvou a minha vida. Que criança faria isso?
— Você também salvou a minha. Se não tivesse explodido o cachorro eu teria virado janta.
— Não, aquele tiro era para você — respondeu quase de imediato.
Antes que Cristinne pudesse continuar a discussão, ambas sentiram o barco brecar. Alguma coisa á frente o impediu de avançar. Emy parecia ter batido o remo em alguma coisa também, como se vários obstáculos surgissem de repente. A questão é, que nada ali havia surgido. Sempre esteve lá. Quando as garotas olharam para fora do barco, diretamente na agua, puderam ver muitos corpos flutuando, pútridos.
Emy tapou a boca com as mãos, horrorizada. Cristinne arregalou os olhos e sentiu um arrepio em toda a espinha. Era muitos corpos que flutuavam ali. Todos de crianças, sendo meninos ou meninas. As peles já estavam roxas, e muitas delas, com manchas esverdeadas. Os olhos, completamente brancos. O odor veio logo na sequencia.
— Meu Deus... o que aconteceu aqui...? — questionou Cristinne encarando Emy.
— Eu não sei... só sei que agora, somos inimigas do estado, foragidas. É por isso que estar morta, seria a nossa melhor opção. Se voltar contra um adulto nos torna inimigos deles. Não é uma regra que aprendemos no Instituto, mas é o obvio a se pensar — deduziu Emy — Seja lá o que essas crianças fizeram para estarem boiando neste lago, pode ter certeza que somos iguais a elas, agora — Emy, com frieza, empurrou os cadáveres para o lado, dando espaço para o barco continuar seu percurso. Cristinne voltou a remar com a cabeça a milhão.
Quais perigos elas enfrentariam na Metrópole? O lago dos mortos seria um aviso para crianças rebeldes? Ou apenas um deposito de corpos que já serviram seus propósitos? Dentre tantos pensamentos ruins, Cristinne olhou para Emy e sentiu um pouco mais de conforto. Mesmo Emy não concordando com nenhuma de suas atitudes e aparentemente não suportando sua presença, ela estava lá, ajudando a remar para o desconhecido.
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Todo Monstro que Há em Nós
Mystery / ThrillerCriadas desde pequenas no Instituto, crianças como Cristinne seguem um regime autoritário em pró dos adultos. Ao completarem 13 anos, são mandadas para lugares onde são rigorosamente exploradas, como a Grande Fábrica. Em busca de seu amigo David, de...