Cap. 1

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   A garota fechou os olhos, engolindo o gosto amargo em sua boca. O sol queimava forte do outro lado da mina, onde alguns dos prisioneiros já suavam.

   — Eu nunca amei ninguém — era verdade.

   Olhando no espelho marcado por digitais na poeira que estava impregnada há séculos, sem nunca ter sido limpa antes, raios de luzes refletiam na vidraça, iluminando o corte recente em sua bochecha, Nessa sorriu.

    — Melhor assim, não acha? — perguntou enquanto olhava seu reflexo.

   A jovem deu um longo suspiro antes de se levantar. Suor escorria pelo seu rosto marcado pela magreza. Não sabia há quanto tempo estava presa em Dustford. A terra designada para os piores prisioneiros, pessoas que cometiam crimes tão absurdos que deveriam ser isoladas do resto da sociedade. 

   Nessa Signeyrsa era uma das poucas fêmeas que ali viviam, se é que era possível chamar celas enferrujadas com cheiro pútrido de casa. Tinha sorte, os guardas diziam-lhe. Nascer mulher era uma maldição naquelas terras. A estimativa de vida de uma, não passava dos 25 anos, e Nessa fazia 21 naquele dia. Mas é claro que ela provavelmente não lembraria, não quando as estações funcionavam diferentes naquelas terras.

   O sol escaldante, às vezes matavam alguns dos prisioneiros. Os guardas preferiam deixar com que a água faltasse, assim não teriam de lidar com os presos, já que muitos morriam de insolação ou desidratados. A verdade nua e crua, é que os tratavam feito animais, os consideravam assim.

   As manhãs costumavam ser quentes, beirando os 46° graus. As noites, frias e cortantes. O vento gelado ganhava força, e se a vestimenta não fosse firme o suficiente no corpo, ou fina demais, acordaria no outro dia com cortes por todo seu corpo pela manhã. Os ossos endureciam como se o gelo fizesse parte do seu sangue, os dentes ficavam em uma constante briga, batendo uns nos outros.

   Por esse e outros motivos, fugir era inútil. Nessa havia tentado algumas vezes, principalmente no início. Ninguém a avisou sobre a Floresta Morta, ou sobre a Montanha habitada por criaturas feitas de ossos e galhos, nem sobre o Lago Vivo. Ela quase morreu. Talvez devesse ter morrido. Muito antes de ir parar nas terras subterrâneas da prisão.

   — Se não comer, eu vou — disse a companheira de cela de Nessa. 

  — Coma Ysdrina — respondeu entregando a tigela com a gororoba verde.

   — Eu não pretendia comer. Faz dois dias que não come Nessa, o que pretende? — Nessa deu de ombros, saindo da cela.

   Ysdrina era uma mulher de pele tão escura quanto a noite, os olhos verdes lembravam o uniforme da guarda real de Craethen. Era magra, talvez não naturalmente, já que todos ali se tornaram apenas pele e osso com o passar do tempo. O corpo da jovem possuía diversas cicatrizes, porém o corpo de Nessa contava com mais.

   Ysdrina foi levada para Dustford por assassinar o seu dono. O velho chamado Holloc era dono de um dos maiores bordéis de Ranurean, a terra dos estrangeiros. Os comparsas de Holloc tinham contato com os Los Kyllers, e um deles conseguiu fazer com que a guarda de Craethen levasse Ysdrina.

   Ranurean era a terra natal de Nessa, onde ela viveu durante 18 anos. No seu reino, não haviam imperadores, apenas a elite. Pessoas ricas por meios ilegais governavam seus pedaços de terra, que eram conquistados através de brigas, assassinatos ou apenas por declaração. Os guardas de Dustford acreditavam que ali, presidiam as piores pessoas de ambos os reinos, mas isso era porque não conheciam as pessoas que viviam em Ranurean.

   Nessa era uma sobrevivente, de todas as formas e meios designados da palavra. Mas ela estava cansada. Cansada de segurar uma picareta sem ponta, picareta esse que constantemente entrava em contato com as paredes da mina.

As Lágrimas Do Fogo | Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora