ATO I - O Princípio do Fim

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Ane já estava acordada a algum tempo, mas permaneceu com os olhos fechados na esperança de voltar a dormir. Estava cansada e sabia que não havia dormido bem novamente, como já vinha acontecendo a algum tempo. Não conseguia se lembrar do horário em que foi dormir ou como foi parar na cama, e a cabeça doía em um claro protesto a exaustão a qual ela mesma vinha se submetendo. Ela sabia que precisava se levantar, mas  o corpo pesado afundava na cama como que pedindo para que permanecesse lá por mais algum tempo.

Massageou suavemente as pálpebras e respirou lenta e profundamente tentando acalmar os pensamentos. As coisas pareciam confusas agora e os problemas de memória pioravam mais e mais a cada dia. O que antes parecia algo natural como esquecer coisas da infância ou o nome de alguém, estava ficando sério, esquecendo rostos rotineiros dos quais deveria se lembrar, ou até mesmo se já havia feito as refeições ou tomado banho. Ela evitou contar a mãe sobre essas falhas por um tempo, mas quando as crises de pânico começaram, teve que encarar o problema. Ainda se lembrava com angústia e temor da pressão esmagando seu peito enquanto tentava respirar em vão quando teve sua primeira crise. Era noite e estava fechando a biblioteca quando uma senhora veio falar com ela. Ane não fazia ideia de quem ela era e simplesmente correu desesperada ao sentir o peito queimar enquanto as vistas embaçavam. Se lembrava do desespero que aquela sensação lhe trouxe pela primeira vez e correu até seu corpo sem ar falhar e cair, acordando horas depois em sua cama, na presença de sua mãe e do Dr Josef Rud.

Dr Rud era o único médico na comunidade em que viviam, e Ane não gostava dele. Era um homem alto, de cabelos oleosos e olhos mais frios que ela se lembrava de ter visto. Seu sorriso era quase sádico e seu toque áspero, e a simples ideia de ser examinada por ele lhe causava calafrios, mas naquele dia Ane não tinha como fugir. Após alguns exames e muitas perguntas, Dr Rud disse que estava tudo bem, e provavelmente as falhas de memória eram resultado de estresse e cansaço, receitando algumas ervas medicinais para acalma-la e ajudar a dormir. Ane até tomou a medicação por alguns dias, mas elas a deixavam sonolenta demais, então ela parou de tomar por conta própria, e preferiu omitir isso da mãe por enquanto.

Deitada na cama, percorreu a mão pelo lençou macio de algodão, se perguntando como a semana havia passado tão rápido. Por mais que tentasse, não conseguia se lembrar de tudo o que fez ou de como os dias haviam passado. Seu quarto estava escuro e frio, e ela sentia uma angústia crescendo como ervas daninha dentro de si. Era uma sensação de urgência que ela não sabia explicar, mas era como se precisasse fazer algo importante que não se lembrava.  

Era domingo, e Ane odiava os domingos. Odiava ter que acordar cedo e odiava mais ainda o fato de que seria obrigada a ir a uma igreja que claramente não a queria ali. Odiava estar entre pessoas que a evitariam como se fosse uma doença, e odiava a sensação de que naquela manha parecia haver algo para além disso, algo que fazia o estomago dela revirar e sua cabeça doer ainda mais. O problema não era a Igreja em si. Ela sempre gostou do lugar e nutria uma profunda e verdadeira paixão por sua arquitetura fria e obscura. Em seu caderno de desenhos, eram frequentes as vezes em que desenhou a igreja ou algum detalhe dela. Ela amava como suas quatro torres pontiagudas pareciam rasgar o céu em tons de preto e escarlate, e gostava de seus enormes vitrais com pinturas de anjos e demônios. Gostava das enormes e frias paredes de pedra, e do assoalho quente revestido em madeira. Mas embora Ane não soubesse explicar, era como se algo muito ruim estivesse lá agora, e entrar lá dentro fazia todos os pelos do seu corpo se arrepiarem.

A brisa fria que circulava pelo quarto a fez esboçar um leve sorriso de canto de boca enquanto se enfiava embaixo da coberta. Ela amava o inverno, e ele finalmente havia chego. Amava as roupas, as comidas e em como os dias pareciam mais curtos e as noites mais longas. E depois de tudo que havia acontecido, o inverno também significava que as pessoas evitariam sair de casa devido ao frio intenso e ela poderia andar tranquilamente sem ter que se preocupar em encontrar alguém que talvez não reconhecesse.

As Crônicas de Luz e Sombra - AneOnde histórias criam vida. Descubra agora