As Crônicas de Luz e Sombra - Ane

Capítulo 11

Com exceção aos poucos guardas nas muralhas, a cidade parecia deserta. Todos os moradores, comerciantes e visitantes se dirigiram curiosos a arena para assistir ao conclave, que  tradicionalmente seria realizado de forma reservada, dentro da Fortaleza de Pedra, e as únicas pessoas que poderiam assistir seriam os cardeais elegíveis ao próximo papado, mas dessa vez seria diferente.

Embora eleger o novo papa em teoria fosse uma votação democrática entre os cardeais, na prática não era assim que acontecia. Tudo era uma grande encenação política, cercada de negociações, renuncias e alinhamentos filosóficso com o que a igreja pregava e os rumos que ela gostaria de ter dali em diante. No fim, antes mesmo dos cardeais serem convocados, eles já sabiam quem seria eleito e esse era o problema dessa vez.

Um ano atrás Ane havia entrado dentro da Fortaleza de Pedra e assassinado o papa. Desde então a igreja convocou onze conclaves, porém em todas as ocasiões os prováveis cardeais elegíveis foram assassinados por ela no caminho. A alta cúpula da igreja procurou em vão o responsável pelos assassinatos, tendo conversado diretamente com Viktor na corte dos vampiros, Rowena no conselho das bruxas e Kahn, líder do clã dos lobos. Todos negaram envolvimentos nos acontecimentos, e por fim, sem ter a quem recorrer, a igreja declarou um conclave público, e convocou cada uma das lideranças a estar presente para garantir que se uma delas tentasse algo, as outras interfeririam. 

Embora a existência de vampiros, lobos, bruxas e outras criaturas no mundo não fosse de conhecimento das pessoas em geral, há muito tempo a igreja sabia deles, mantendo uma falsa trégua em uma guerra silenciosa pelo controle do mundo.

Os cardeais foram chamados e escoltados fortemente em grupos pelos exércitos da igreja, reforçados pela ordem dos assassinos, que também negou haver qualquer contrato para a morte de um papa ou cardeal. Agora, quase um ano depois, finalmente o circo estava formado, e quase todas as peças estavam no exato lugar em que Ane queria.

Ela caminhou lentamente pelas ruas estreitas da cidade que sempre odiou. Tudo era branco demais pra ela. Desde a fortaleza, construída em mármore, até a cidade feita de pedras brancas ou em tons de cinza claro, tudo era hipocritamente feito para transmitir a impressão de pureza e paz, coisas que não se viam dentro da corrupta e violenta igreja, e muito menos nas sujas e miseráveis ruas que compunham a cidade a frente da fortaleza. 

Nas poucas vezes que esteve lá, Ane nunca gostou de como se sentia. Era um dos únicos lugares no mundo que a deixava desconfortável, e tudo que conseguia sentir era o cheiro de morte das milhares de vidas tiradas pela igreja ao longo dos séculos. Seu dinheiro e poder jamais vieram do divino como ela pregava, e sim do roubo de vidas, liberdade e tesouros através de suas intermináveis "guerras santas".  

Ela se sentia agitada e inquieta enquanto caminhava, e não pôde conter o ímpeto de acariciar os cabos de Ebony e Ivory buscando um pouco da calma que as duas lhe proporcionavam. Ane tinha pressa, mas hoje não poderia ter pressa. Ainda faltava uma peça no final do jogo, e ela sabia que não seria fácil fazer Viktor aparecer. Para isso, ela precisava que Altair a reconhecesse, e precisava que ele fizesse algo que nunca fez: Altair precisava ser heroico, e essa era a única coisa que poderia falhar em seu plano.

Parou em uma banca de peixes salgados abandonada pelo dono, assim como todas as outras, e beliscou alguns pedaços. Na banca da frente roubou ameixas e se divertiu comendo, enquanto virava as ruas que conhecia tão bem após observar e memorizar tudo de cima por muito tempo. Após andar algum tempo, uma enorme área se abriu a sua frente, onde uma multidão se espremia por um espaço. Ane passou por entre a multidão, forçando seu corpo entre eles, e se dirigiu até a beirada da arena, que se estendia em uma longa arquibancada circular que também estava lotada de pessoas e mercadores em festa.