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Lavínia: início de julho

Se tem uma pessoa no mundo que está feliz essa pessoa sou eu! Meus pais me ligaram hoje pra falar que as parcelas das dívidas estão sendo pagas no dia que meu salário de esposa cai na conta, com isso e com a volta da clientela pra empresa, meu pai disse que eu posso desenhar uma pequena coleção de jóias - como eu fazia antes de pararem a produção de mercadorias - e com o dinheiro das vendas eu posso voltar pra faculdade em Agosto. Parece um sonho!

Eu estava deitada na sala de bunda pra cima desenhando uma pulseira pra coleção quando ouvi o portão da garagem abrindo. Suspirei e continuei focada no desenho enquanto Gabriel não abre essa porta de entrada.

Estamos quase completando 4 meses de casamento, ou melhor 4 meses de contrato, e ele continua sendo uma incógnita pra mim. Tem dias que passa por mim e não me dá nem um bom dia e tem outros dias que conversa igual a um papagaio perguntando onde está alguma coisa, contando algo do time, e as vezes até agradece quando eu ajudo em qualquer coisa. Mas aí no dia seguinte volta a ser o Gabriel debochado de cara marrenta com quem eu me casei.

Eu nunca sei se ele vai chegar puto sem falar nada e ficar xingando no quarto dele sozinho ou se vai chegar amigável perguntando se eu já jantei e se quero pedir comida.

Como eu disse, uma incógnita.

Ele abriu a porta de madeira e eu ergui minha cabeça pra olhá-lo e descobrir pela expressão facial se hoje estou casada com o Gabriel debochado ou com o Gabriel brincalhão. Olhei e... primeira opção infelizmente.

"Oi, cheguei."

Assenti com a cabeça.

"É, eu percebi."

Ele me olhou com a cara fechada e eu dei um sorriso fraco não ligando muito pro estresse dele.

"Já jantou?"

Perguntou voltando da cozinha enquanto bebia água direto da garrafa. Ignorei o hábito anti higiênico dele porque estava muito mais chocada com o fato dele ter mudado de personalidade em 5 segundos. É, isso às vezes acontece também.

Neguei com a cabeça e ele se jogou no sofá que fica no limite lateral do tapete onde estou deitada, de um jeito que ele estaria deitado ao meu lado se eu estivesse no sofá e não no chão.

"Quer pedir o quê?"

O brinco que ele usava chamou minha atenção quando brilhou. Olhei pro desenho e soube que era um toque desse brilho que faltava, por isso me concentrei de novo no papel enquanto dizia que ele podia pedir qualquer coisa.

Gabriel: nesse dia

Eu estava conversando um monte e Lavínia só respondia com sinais de cabeça enquanto continuava desenhando num papel.

Na verdade fiquei feliz por ela estar concentrada, assim não consegue perceber que de vez em quando eu me perco na minha fala porque estou olhando pra bunda dela mal coberta nesse pijama. Mas, pra não perder o costume, eu disse:

"O que é que você tanto rabisca?"

Pelo olhar emputecido, o que eu disse foi o equivalente a ter dado um grito com ela.

"Hein, Lavínia?"

Por força do hábito, me estiquei e coloquei minha mão no ombro dela, como se informasse que estou falando com ela e que ela devia responder. Só me dei conta que estava tocando nela quando senti a pele macia contra a minha mão.

Óbvio que já tinha encostado nela, mas sempre em público e para manter as nossas aparências de casal feliz. Nunca dentro dessa casa ou durante uma conversa.

Puxei minha mão de volta e Lavínia parou de olhar pro ombro onde eu tinha tocado e voltou a se concentrar no desenho. Fiquei em silêncio mexendo no celular até ela voltar a conversar:

"Não são rabiscos, Gabriel. São jóias."

Ela se sentou de perninha de índio e colocou a folha que desenhava antes na minha barriga. Larguei o celular e peguei o papel, admirado com a riqueza de detalhes de cada um dos três pequenos desenhos.

"Até que você não rabisca mal."

Tenho certeza que Lavínia fingiu que não ouviu e começou a contar:

"Você não perguntou mas eu vou contar. Essa é a minha coleção de jóias na empresa dos meus pais, vai ser lançada no final desse mês e com os lucros eu vou pagar esse semestre da minha faculdade."

A morena deu um sorriso tão bonito quanto os desenhos que eu via.

"Parabéns, Lavínia."

O sorriso dela ficou maior enquanto agradecia e murchou no segundo seguinte quando eu disse:

"Mas com o dinheiro que você ganha pra ser minha esposa dá pra pagar três faculdades. O que vocês fazem com aquela grana toda?"

"Porque você é tão chato e incapaz continuar com a sua personalidade legal por uma conversa inteira?"

Me senti mal por meio segundo.

"Desculpa. Eu só... fiquei curioso."

Lavínia suspirou e pegou uma nova folha em cima da mesinha de centro antes se deitar de novo no chão e voltar a desenhar em silêncio. Fiquei meio arrependido e perguntei:

"Em que faculdade você vai estudar?"

Ela respondeu num tom quase inaudível onde era e voltou ao silêncio. Fiquei sem saber como contornar essa situação e sem saber mais ainda porque eu estava me importando tanto, já que há dois meses atrás a minha atitude seria ir pro meu quarto e deixá-la emburrada aqui.

Pra minha sorte, Lavínia é uma garota que fala pelos cotovelos:

"A minha família tava entupida de dívidas. O dinheiro é usado pra pagar 2 agiotas, algumas empresas fornecedoras de matéria prima, o colégio dos meus irmãos, a hipoteca do apartamento dos meus pais e as contas da empresa e da casa."

Juntei as sobrancelhas.

"É muita conta, Lavínia."

Ela deu uma risadinha irônica que me deu espaço pra brincar:

"Ei! Ironia é o meu local de fala."

A gargalhada dela preencheu a sala e me arrancou um breve sorriso.

"Se não fosse dívida pelo pescoço você acha que eu ia topar me casar com um cara estranho?"

Larguei a folha na mesinha de centro e cruzei os braços.

"Lavínia assim você me ofende. Eu não sou estranho, eu sou um gostoso!"

Ela parou de desenhar e me olhou por cima do ombro.

"Eu tô falando de estranho no sentido de desconhecido, não de esquisito ou feio. Até porque você não é esquisito nem feio."

No segundo seguinte pareceu arrependida como nas vezes que fala demais e por isso deitou a cabeça ao lado da folha como se quisesse olhar mais de perto para a jóia que desenhava agora. Sorri quando disse:

"Você também não é esquisita. Nem feia."

Vi pela bochecha dela que ela estava mordendo um sorriso. Decidi voltar ao assunto porque ainda estava curioso:

"Você não fica com quase nada do salário, né?"

Ela negou com a cabeça.

"Você me dá tudo dentro de casa. Eu não pago as contas, nem comida, nem roupa pra ir nos eventos. Então eu acabo deixando tudo pra eles mesmo, se vem três notas de cem pra minha mão ainda é lucro."

Fiquei alguns segundos olhando pra Lavínia. Essa coleção significa muito pra ela mesmo então, deve ser a primeira coisa que essa menina faz por si mesma em muito tempo.

"Eles devem ter muito orgulho de você."

Ela sorriu fraco e agradeceu voltando a desenhar. Ouvi uma buzina e saí pra pegar nosso jantar, quando voltei só não comemos em silêncio porque ela é uma garota muito tagarela. Mas de alguma forma, talvez eu esteja aprendendo a gostar disso.

Casamento Arrumado - GabigolOnde histórias criam vida. Descubra agora