Dois

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De alguma forma cruel, a perda fez com que Kafenia caminhasse mais rápido pela estrada. Nenhum dos seus companheiros falou depois que Milo explicou o que havia acontecido, e como os planos reais de Dali se aplicavam ali. Eles presumiram que seria melhor continuar, e Kafenia seguiu. Mesmo com o peito carregando uma dor maior do que ela estava acostumada, ela se levantou. Mesmo sua cabeça girando com o que parecia ser percepção, ela seguiu. Por algum motivo seus joelhos não se dobraram. Por alguma razão, ela não sentiu em momento algum que cairia, ou que suas forças a deixariam. Hakon e Milo permaneseram firmes como duas pilastras ao seu lado, prontos para qualquer coisa. Menos resgatar Dalibur.

Kafen se pegou pensando que seria mais fácil, se fosse Milo. Não pelo fato de ele ser mais forte, ou menos importante, mas pela habilidade que havia se desenvolvido entre eles. Quantos metros afastados eles podiam ficar, mantendo a telepatia funcionando? Kafen tentava ocupar sua mente com isso, e não com o sequestro de Dali, ou com os horrores que ele devia estar sofrendo naquele lugar.

Hakon pesava seus olhos sobre a estrada, parcialmente ciente do conflito interno da princesa. Meri apenas observava os dois, a forma como os ombros da herdeira pesavam para frente, e como o olhar de Milo parecia fixo nela. Eles chegaram do porto antes do previsto, sem parar para descansar ou comer. Qualquer parada faria o grupo pensar e todos sabiam que se pensassem demais, acabariam dando meia volta para se jogar contra a força vermelha.

Depois de andar por dois dias seguidos sem nenhuma fala, a garganta de Kafen doía. O grupo parou em frente à uma taverna lotada, esperando pelo nascer do sol. Não faltava muito, mas pareceu uma eternidade com aquele silêncio. Hakon e Meri saíram pela cidade para se informar, e Milo pensou que um pouco de conversa mental poderia ajudar, mas parou quando a possibilidade de estar invadindo o espaço de Kafenia passou por sua mente. Ele percebeu então, que nunca havia notado a diferença de postura da princesa, quando ela estava com ele ou com Dali. Com Dalibur ela sorria de forma leve, gargalhava e de alguma forma ficava... radiante. Mas com ele, ela tinha sempre aquele olhar pesado, como se prestasse atenção e, cada movimento do próprio corpo, como se controlasse tudo.

Milo sabia que Kafenia deveria se casar com o primeiro nobre poderoso do seu reino, ou talvez um príncipe aliado assim que chegasse em casa. Então por que se importar? Não era uma disputa, afinal nenhum dos irmãos a teria. Ele tentou implantar aquela idéia na mete, mas sua imaginação não conseguia parar de fazê-lo acreditar, que de qualquer maneira, Dalibur venceria.

— Temos um problema.

Hakon e Meri tinham retornado, com uma bolsa de suprimentos e um olhar nada reconfortante no rosto. A garota estendeu um sanduíche para Kafen, antes que aquela conversa prosseguisse. Um frio se instalou na barriga da princesa, compreensão, ou alguma outra coisa tomando forma. Ela já imaginava o que iriam dizer, e talvez por isso não tenha se sentido tão surpresa quando Hakon declarou:

— Os portos vão fechar definitivamente daqui três dias. Não vamos poder voltar Kafen, mas se voltarmos agora...

— Não vamos conseguir sair. — Milo completou a idéia.

Por um momento, silêncio reinou no grupo. Depois veio o desespero nos olhos castanhos da princesa, e Milo pensou que seu coração poderia explodir. A garota passou as mãos pelos cabelos, o desespero nítido em seu rosto. Haviam passado por tanto esforço, tanta dor para chegar ali. E nada disso faria alguma diferença.

— Deixá-lo para trás não é uma opção.

Foi a voz autoritária, talvez a forma como Kafenia se pareceu tanto como uma rainha quando falou, que paralisou a todos. Os irmãos se entreolharam, Meri apenas observou, a forma majestosa com que Kafenia declarou simplesmente, esticando o pescoço e transmitindo a certeza. Quem ousaria discordar? Talvez da antiga Kafenia, todos eles. Talvez dois dias atrás quando ela ainda parecia exposta e fraca, Milo ergueria a voz e indicaria outro caminho. Mas ali não. Não quando eles enxergaram em seus olhos, que ela iria sozinha se preciso fosse.

— Há rumores de guerras. — Meri continuou a notícia. — Se nos aproveitarmos da confusão no palácio, acho que vai ser fácil entrar sem que percebam.

— Ainda mais com a ajuda de Axel. — Hakon argumentou.

Axel, e não Elize. Porque Kafenia não tinha certeza se a garota que pensou ser sua irmã, trairia Brank por ela. As vezes parecia que até o rei tinha medo do próprio filho. Milo se recostou contra a mureta de pedra escura daquela pequena aldeia. As pessoas que passavam por eles não se incomodavam em olhar, nem desconfiavam dos capuzes longos. Aquela era a primeira refeição deles em dois dias, mas por algum motivo, ele não estava com fome.

— Mas como chegaremos lá?

Meri parecia desanimada. Só de pensar em percorrer todo o caminho das montanhas até ali novamente... mas o olhar de Milo se desviou para um comércio próximo, com uma placa que não lhe era estranha. Uma loja com janelas grandes e enormes barris de peixes exóticos, cuja a placa também estava localizada em uma peixaria perto de sua casa. Sem pensar duas vezes, Milo ergueu um dedo para uma das carroças enormes cheias de carga, prontas para partirem, na direção da capital.

Kafen analisou os homens que subiam e desciam da parte do carregamento, e como aquilo estava apertado. Sua garganta se apertou quando se deu conta da falta de espaço, mas que escolha ela tinha? Com olhares discretos, e medo de pronunciar qualquer palavra em voz alta, Kafen esperou que o trio de rapazes se retirasse para buscar mais barris, para se esgueirar até a carroça. Ela se lembrava daquela placa também, do imenso robalo vermelho com letras garrafais indicando sua qualidade. Ela se lembrava de uma daquelas carroças entrando pelos portões do castelo.

Aquele era o tipo de viagem mais rápida, porque a comida do rei jamais poderia chegar em mal estado. Kafenia pensou nisso, lembrou-se dos olhos do seu irmão, do sorriso de Dalibur, e da maldade de Brank, quando apoiou as mãos na madeira fria, e se impulsionou para cima. Milo apareceu logo depois, ocupando mais espaço do que ela esperava, arrancando ar de seu pulmão. Seu corpo tremia, por algum motivo inexplicável ela sentiu medo, desespero, e pensou que ia morrer. Suor frio escorria pelas suas mãos agarradas às laterais do corpo, sua pele esbranquiçada era visível mesmo na escuridão. Milo viu.

Quando Hakon e Meri estavam prestes a subir também, em um sussurro de agonia, Milo avisou:

— Escolham outro, nos encontramos lá.

Sem explicações, Milo não deu motivo para contestação quando deu as costas para a única entrada da carroça, e com cuidado, afastou o máximo de barris que pôde, para arranjar algum espaço. Ainda caberiam mais ou menos seis barris, mas os trabalhadores só conseguiriam colocar metade. Milo os escondeu, se enfiou o mais afastado de Kafenia que aquele pequeno lugar permitiu, e assistiu enquanto sua respiração se normalizava.

— Obrigada.

Foi o sussurro mais gratificante que ele escutou em toda a sua vida.

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora