Seis

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Kafenia não conseguia sentir culpa. Ela não se lembrou nem do próprio nome quando aquele sentimento se expandiu, saiu dela, deles e voou pelo mundo. Era irreal, ela sentiu cada parte sua e dele, cada centímetro em que eles se tocavam. A carroça ainda estava ali, e eles ainda estavam naquele lugar pequeno com tudo intacto. Mas ela podia jurar que havia explodido tudo. Sem se importar com a confusão, ela o puxava para mais e mais perto. Seus dedos se enterravam no couro cabeludo dele, os fios do cabelo se entrelaçando em seus dedos. Milo se segurava para manter a calma, apertando firme seu quadril que ainda estava posicionado contra ele. Cada grama de sua força estava concentrado nela, e do cuidado para não liberar nada que ainda não fosse necessário.

Haviam apenas alguns dias que Milo percebera o que sentia por aquela garota, percebendo também o que ela e seu irmão tinham. Mas ele não queria pensar naquilo agora. Kafenia se moveu em cima dele, fazendo um grunhido escapar do fundo da sua garganta, que logo foi interrompido. Sem aviso, um choque repentino os arremessou longe pelos ares, uma batida que despedaçou a carroça. Peixes, pedaços de madeira e pessoas voaram, junto com a carroça ao lado que também fora atingida.

Kafenia havia visto aquilo, segundos antes.

O corpo da princesa se desgrudou do de Milo quando ambos voaram, e aterrissaram na grama úmida. Kafen conseguiu se arrastar para trás a tempo de desviar de um pedaço de madeira voador, que Milo agarrou ao esticar uma das mãos. Hakon e Meri, que estavam na carroça ao lado, Não foram atingidos. Eles aproveitaram o alvoroço dos funcionários preocupados para pular da parte de trás, e foram até onde Kafen e Milo estavam caídos na grama.

— Vocês estão bem?

A princesa respirava com dificuldade, o Milo não tirava os olhos dela. Ele também havia visto. Entretanto, por algum motivo sua mente não se prendia ao fato de que ele havia de alguma forma previsto o futuro, porque estava completamente presa a outro fato: Ela havia o beijado. E parte dele se sentia culpada pela forma como havia traído o irmão, mas a outra parte... queria mais.

— Sim. — Ela respondeu. Porque Milo não tinha certeza de que era capaz de falar naquele momento. — Vamos sair daqui antes que nos vejam.

Os homens que dirigiam as carroças haviam abandonado seus postos, e estavam agora ajoelhados ou de braços cruzados perto do acidente. Não seria possível entrar em uma das carroças intactas por conta dos barris a mais, por isso o grupo aproveitou que já estavam praticamente na entrada da capital para continuar seu caminho pela mata.

Era dia, e pela posição do sol Hakon estimava que não demoraria muito para escurecer, por isso pediu a Milo para procurar abrigo. Kafenia se ofereceu para ir junto, mas ele pediu sua ajuda para outra coisa. Hakon era esperto, mais inteligente do que o pouco ensinamento que ele tinha deveria fazê-lo ser. Não era um gênio, mas via coisas que muitos não viam, e conseguiu enxergar aquele olhar. O olhar que Milo manteve sobre a princesa, no mesmo brilho que Dali costumava manter. Ele previu uma catástrofe.

— Gosta de ler?

Hakon levou Kafen até um pequeno morro coberto de grama e terra, enquanto Meri os esperava em baixo. A princesa franziu o cenho para ele, mas não o interrompeu.

— Eu costumava ler fantasias quando era mais novo. Adorava a parte em que a garota principal finalmente escolhia quem queria.

Algo gelado tomou conta do estômago de Kafenia. Ela contraiu os dedos na esperança de que aquele único ponto de equilíbrio a ajudasse, mas Hakon viu aquilo também.

— Não senti pena de você quando a conheci princesa. Senti orgulho. Porque mesmo com uma ajuda da magia de Dali, você resistiu. E não estou falando só das sombras rasgando sua pele, mas do desprezo rasgando sua alma. Eu aprendi a te respeitar além de admirar, e isso trás amor. Eu amo você Kafen, e talvez não da forma como Milo ou Dali, mas quero o seu melhor. — Hakon se virou completamente para ela agora, notando os olhos aguados. Ele passou uma mão por cima de seu ombro, e abriu seu coração. — Quero que seja amada por completo e escolha com sabedoria. Por isso me escute, por favor. Não se esqueça de que você tem um povo para proteger, e meus irmãos... são dois campos minados de formas diferentes. Você vai ter tempo pra entender tudo isso, então por favor... Não tome uma decisão precipitada. Não antes de assumir seu poder.

Ela estava confusa. A culpa que havia ignorando agora a consumia, porque mesmo sem assumir nada com Dali, ela sentia ele fundo dentro de si. Ela conseguia alcançar aquele núcleo de poder invisível que a protegia, e parecia egoísmo não escolhê-lo. Mas ao mesmo tempo os sentimentos com Milo eram tão confusos, que decepcioná-lo parecia inevitável e impensável ao mesmo tempo. As lágrimas que ela vinha guardando escorreram pelo seu rosto, deixaram aquela barreira cair. Hakon esticou os braços e nem precisou dar uma palavra para que ela se jogasse contra ele, seu corpo magro. O fraco que havia a sustentado de longe com olhares todos esses anos. O garoto como ela, quem não deixava que ela não se sentisse sozinha. Seu primeiro amigo.

Ela se sentia uma cega por não ter visto antes, como Hakon sempre esteve ali por ela. E talvez aquele desespero em escolher tivesse relação com o fato de ela nunca ter se sentido aceita em lugar algum, e as primeiras pessoas que a quiseram... a tiveram. Mas ela tinha mais coisas com o que se preocupar agora, e depois dessa conversa entendeu o peso da responsabilidade que carregava. Hakon pareceu ter se esquecido da ideia do casamento arranjado, é isso já era um alívio. Entretanto a partir dali, Kafenia não gastaria energias pensando em sua vida amorosa, mas focando energias para seu povo, e a reconstrução de uma nação. E depois, quando ela estivesse pronta e realmente decidida do que queria, escolheria. E se um deles desistisse, ou até mesmo os dois, ela já teria sua resposta.

Foi ali que a princesa começou a se tornar rainha.

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora