Nove

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Em algum momento daquele plano genial, os irmãos perceberam que teriam que atravessar a fossa para saírem dali. Era a única saída sem ser pelo local de onde a comida vinha, que estava trancado naquele ponto da madrugada. Axel se perguntou quantas vezes Elize havia passado por lá, para saber exatamente quais esquinas virar, e quais corredores estariam livres. Aquilo era um labirinto. E se Axel se sentia perdido, Elize sabia exatamente onde pisava. Até quando abriu a porta que os levaria para fora, e mandou Axel ir primeiro.

— Depois que você sair, vai encontrar algumas tábuas de madeira. Traga-as para mim, assim passamos Dali sem machucar ele.

O príncipe seguiu sem contestar, e voltou segundos depois com as exatas tábuas. Sem muito esforço, os irmãos passaram o pobre garoto por cima das fossas sem precisarem mergulhar nela, e depois a princesa saiu. Com o vestido sujo e mal cuidado ela rasgou as bordas, e tirou os sapatos. Aquilo só os atrasaria. Os dois agarraram Dali na mesma posição, e continuaram andando. Não faziam ideia de pra onde, só precisavam se afastar do castelo, dali, de Brank.

Eles adentraram na floresta rasa que contornava o vilarejo principal, evitando serem vistos mas ainda se aproveitando do calor da cidade. Eles não podiam fazer fogueira para não denunciar a própria posição, então precisavam encontrar algum lugar seguro rápido. E longe dali. Dalibur tremia, Axel não sabia se era de dor ou de frio. Eles não estavam vestidos para sair na neve espessa. Durante uma hora Elize ignorou seus membros doloridos. Durante uma hora eles caminharam sem prestar atenção nos dedos que congelavam, ou nos pés que ameaçava se quebrar. Elize não reclamou quando sangue quente começou a escorrer de suas narinas, e também não deixou que Axel visse. O príncipe usava a pouca magia que lhe restara para escutar os ventos, para sentir o que os esperava mais à frente. Até ele avistar.

Uma nuvem de fumaça escura, um pouco fina demais para a fogueira de um acampamento. Era algo pequeno, provavelmente pra poucas pessoas. O coração do príncipe se acelerou com esperança, e ele logo pediu para que a irmã mudasse de direção. Não estava longe, então eles chegariam em vinte minutos de caminhada. Mais vinte minutos e eles poderiam se aliviar no calor do fogo, esticar os dedos e deixar Dali descansando, mais vinte minutos e...

Elize caiu. Sem aviso ou tontura, ela só caiu na neve, fazendo Axel perder o equilíbrio e cair junto com Dali. Os três se espatifaram no meio das pedras cobertas de neve, ruídos ecoando no ar com o choque entre seus ossos e as superfícies cortantes. Elize gritou quando viu o vermelho brotar de sua pele, cortando seus braços com o impacto. Axel rapidamente ignorou os próprios cortes para ver a irmã, e usar a pouca cura que tinha para ajudá-la.

— Consegue andar?

Ele estava preocupado. Mas não conseguiria levar os dois dali, e se tivesse que escolher... bom, não chegava a ser uma escolha.

— Consigo.

Elize não se deu tempo para pensar quando impulsionou os joelhos para ficar de pé, o gelo cortando suas solas descalças. Ela gritou baixinho, e cobrindo as mãos sujas de sangue com mais um pedaço de seu vestido rasgado, segurou as pernas de Dali. Axel se apressou para pegar o outro lado, e assim os dois continuaram. Deixando um rastro de sangue no caminho.

Quando estavam no meio do caminho escutaram vozes. Os olhos de Elize se encheram de lágrimas de alívio, e o peito de Axel se expandiu em agradecimento. Os dois aceleraram o passo, e quando estavam perto o suficiente para serem ouvidos, passaram a gritar por ajuda. E ainda bem que o fizeram, porque a exaustão tomou conta deles antes que pudessem chegar ao grupo de pessoas reunidas naquela fogueira. Os arrastou para o chão antes que Kafen visse o rosto do irmão mais uma vez.

Três corpos caídos no chão diante de Milo, fizeram o fogo oscilar ao seu lado. Em uma batida de coração Kafen estava ao seu lado, no seguinte, a princesa já estava ajoelhada diante dos três não muito longe, os arrastando para perto do fogo. Hakon não pensou duas vezes, não tão rápido quanto Kafen ele se prontificou para ajudar, e usou toda a sua força para conduzir o corpo mais pesado, o que Kafenia não havia conseguido carregar. Milo ajudou a posicionar a garota loira de cachos dourados em seu colo, para que seu corpo não entrasse em contato direto com a neve. Ele a ajeitou contra seu peito e esperou até que as bochechas estivessem coradas, para respirar fundo novamente. Enquanto isso, Kafenia puxava Dalibur e o abraçava perto do fogo, e Hakon cuidava de Axel.

Os dedos arroxeados do príncipe loiro foram normalizados depois que Hakon os segurou perto do fogo, e a tremedeira dos corpos passou. Kafenia se sentiu tão aliviada que finalmente conseguiu reparar em si mesma, e nas lágrimas que umedeciam seu rosto. Ela não havia percebido o quão feliz estava, quão grata por aquilo ter acontecido. Encontrar todos os que amava bem debaixo do seu nariz sem ter que fazer esforço algum? Aquilo foi fácil até demais. Ela quase esperava que Brank pulasse de dentro dos arbustos com aquela cara convencida que ele costumava ter.

Mas isso não aconteceu. Pelo contrário, a felicidade de Kafen apenas se ampliou quando os olhos de Axel foram os primeiros a se abrir, o azul piscando para o escuro do céu, e depois as pupila baixando-se na direção dela. Um arrepio tomou conta de seu corpo quando o príncipe se levantou de onde estava deitado, e sem se importar com nada mais, simplesmente se atirou contra ela. Os dois caíram no chão agarrados, sorrindo e chorando, soluços de felicidade ecoando entre os dois. Axel estava ali, e Kafenia não conseguia sentir nada além de gratidão.

— Você está viva. — ele sussurrou. — E bem.

Seu irmão se afastou, apenas o suficiente para conseguir olhá-la nos olhos enquanto memorizava cada detalhe do seu rosto, com medo de que pudesse perder aquilo de novo. Kafen sorriu.

— Graças a você. E a eles também.

Ela estendeu uma mão para onde Hakon e Milo estavam, depois indicou Dalibur com o olhar, que ainda estava deitado contra o casaco dela. Mas Axel balançou a cabeça, negando.

— Não. Graças a mim não. No dia em que você fugiu, foi porque Brank deixou. — Algo mudou no olhar do príncipe, uma coisa escureceu dentro dele. O peito de Kafenia se apertou, mas ela o deixou continuar. — Ele me encontrou depois que ergui a fumaça pra te proteger. Ele te viu. E por algum motivo doentio... ele só sorriu. E penetrou as sombras em mim.

Kafenia sufocou um suspiro. Ela sabia o quão invasivas aquelas sombras eram, e mesmo acostumada com aquilo ainda doía demais. Imaginar Axel sendo violado por aquilo... o corpo do seu irmão tremeu. Lágrimas brotaram de seus olhos, mais puras nítidas e sinceras que antes, lágrimas de dor.

— Eu não faço ideia de como aguentou todos esses anos Kafen. Do seu que depois que as sombras saíram do meu corpo... — Ele juntou as mãos perto do peito. Como se alguma mão invisível ainda o sufocasse. — Ele levou algo de mim. Algo do meu poder. Só consegui ajudar ele a sair dali. — O príncipe apontou para Hakon. — Depois disso...

— Depois disso ele nunca mais conseguiu nem sequer acender uma vela.

Elize completou, acordada e deitada contra o peito de Milo.

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora