Dezenove

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Certo, as regras eram simples. Ninguém naquele barco estava autorizado a usar nenhum tipo de magia, mesmo que pequena, até que eles descobrissem como concertar aquilo. Hakon ficou sabendo sobre toda aquela confusão quando Dalibur apareceu em seu quarto, dizendo que precisariam dividir para deixar Kafen dormir com seu irmão. Milo não questionou, mas Hakon percebeu algo diferente no olhar do irmão, algo além da mágoa de antes. Preocupação, medo. Foi aí que Dalibur confessou o que havia acontecido, o que tinha guardado para si desde a briga com Kafenia.

— Tem noção do que fez Dalibur? — Hakon coçava a nuca, preocupado. — Não importa o quão magoado você estava, colocou todas as vidas em risco.

— Eu sei, mas...

— Mas nada! — Hakon interrompeu, o rosto quase tão vermelho quanto seu cabelo. — Ela é nossa responsabilidade, não pode deixar as coisas se misturarem assim! É o futuro do nosso reino, não tem noção disso?

Os olhos dele caíram ao chão. Mas Hakon não conseguiu sentir culpa, não quando um fato ficava voltando a sua mente.

— Tem noção de quantas vezes eu a toquei depois disso? Tem noção do perigo que um toque pode proporcionar?

Milo saiu da pequena cabine com dois colchões, e subiu para a superfície do barco. Ele era incapaz de continuar ali dentro sem socar o rosto de Dalibur pela falta de responsabilidade, mas também não podia ignorar o fato de que até mesmo tocar em Kafenia poderia matá-la. Isso foi antes de ele se encontrar sentado diante dela, a observando dormir. E no meio do sono aquele pesadelo.

Agora ali estavam eles, os três encarando o chão e mentalizando as possibilidades de aquilo tudo dar errado. Eram muitas. Kafenia não se sentia mais esmagada pela atmosfera, seus braços e pernas já não eram tão finos, mas em compensação... o novo perigo era pior. Antes ela podia ser frágil ao extremo, porque o poder de Dalibur não deixaria que ela quebrasse. Mas agora...

— O que exatamente é essa barreira de sangue?

O balanço do barco fez o estômago de Kafenia se revirar. O rosto de Hakon pareceu límpido novamente quando ele começou a explicar.

— Foi um juramento de sangue feito entre nossa mãe e a sua enquanto estavam grávidas. Elas ligaram a vida do Dalibur à sua, fazendo dele um escudo humano. Isso era uma via de mão dupla, ou seja, enquanto ele vivesse para te proteger, nenhum dos dois morreria. Protegidos por essa ligação onde poder corria dos dois lados, vocês eram imortais, mas não inquebráveis.

As imagens quase nítidas das marcas escuras na pele pálida de Dalibur voltaram para Kafen. Ele parecia quase morto quando seu poder eclodiu.

— Se ele não pode morrer, como eu o salvei?

— Ele não ia morrer. — Hakon observava as botas recém limpas, e a gota de chuva que caíra em cima dela. — Provavelmente ficaria em um sono profundo até conseguir se curar, ou até arranjarmos outra solução. Quando você negligenciou sua vida para salvá-lo, o laço de sangue foi desfeito.

Ela se sentia uma idiota agora. Culpada, abraçou o próprio corpo e enterrou a cabeça entre as pernas, desejando sumir. Pelos deuses, ela não conseguia tomar três decisões sem que duas estivessem erradas. Que tipo de rainha ela seria?

— Vá para o quarto de Axel. — Hakon se levantou e estendeu a mão para a amiga. — Imaginamos que ficaria mais confortável com ele.

De fato. Ela aceitou a ajuda para levantar e seguiu os garotos para o escuro do corredor. Ambos foram para o quarto restante enquanto ela abriu com cuidado a porta que deveria ser sua. Um minúsculo cômodo com dois colchões finos e um balde de água limpa, era isso que tinham. Kafenia tropeçou nos pés de Axel, e sem acorda-lo, se deitou no colchão ao lado e descansou. Sem dormir, porque mais pesadelos a assombravam.

No dia seguinte o sol estava mais quente. Kafenia conseguiu tirar as mangas do macacão co ajuda de Milo, e sua irmã e Meri fizeram o mesmo. Todas vestiam roupas confeccionadas por ele, e em poucos dias de viagem ele havia feito mais com o tecido que sobrava dos tripulantes. Não tinha muito o que fazer em alto mar, então para Milo, restava a costura. Para Elize, restava perseguir Dalibur de um lado para o outro do navio, puxando assunto e prestado o máximo de atenção em seus movimentos. Hakon e Meridwen discutiam quase sempre sobre o futuro, formavam planos para o desembarque e sonhavam juntos. Axel afiava espadas fracas que tinha encontrado nos depósitos do navio, e convencido o capitão a empresta-las. Mas Kafenia duvidava que alguém ousaria pegar de volta.

Os dias da princesa se resumiam em assistir a todos fazerem suas tarefas, oferecendo uma ajuda aqui e ali só pra não se sentir mal com a inutilidade. A verdade é que ela buscava algo para ocupar a cabeça, tentando se distrair de todo medo que a dominava. Cerca de uma semana depois que entraram naquele barco, Kafenia apoiou as mãos em um mastro ao observar Dalibur fazendo uma espécie de nó, no meio de uma tarde de sol quente.

— Ele é lindo né?

Kafen deu um pulo quando a voz de sua irmã soou, alta demais para manter a descrição. Seu coração se acelerou, mas seu rosto não demonstrou nenhuma emoção.

— Se você acha...

A caçula deu as coisas para Elize, mas a fala seguinte a impediu de dar qualquer movimento para se retirar.

— Aposto que beija muito bem.

Fúria tomou conta de Kafenia, mas seguindo os concelhos de Hakon, ela se conteve. Apenas o suficiente para não socar a irmã, mas não o bastante para ficar calada.

— Presta atenção Elize. Eles não são como seus principezinhos toscos. São meu povo, minha corte. — Elize deu um passo para trás conforme Kafen avançou. — São pessoas que merecem ser mais que seus lances de uma noite.

Uma sobrancelha loura de Elize se ergueu.

— Está falando de Dalibur, tem certeza? Ou será que Milo ainda tem espaço aí?

Kafenia bufou com a ironia.

— Da pra ver o quão confusa você está. Só queria ajudar.

E ali estava ela, mais uma vez. A doce Elize, ou o que todos além de Kafenia viam. Ela enganava a qualquer macho que se aproximava demais, mas Kafenia... ela via a malícia incrustada nas vírgulas de suas palavras, na forma como ela enrolava o cabelo louro no dedo para falar em um tom inocente.

— E desde quando você se importa?

Elize esticou uma mão para Kafenia, e em um reflexo primitivo e involuntário ela... pulou para trás. Como um animal assustado. A respiração de Elize se acelerou junto com a de Kafen. E algo muito ruim teria acontecido se Milo não tivesse gritado do seu canto:

— Pode me ajudar aqui Kafen?

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora