Treze

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Um sonho inquietante assombrava o coração de Kafen. Ela não sabia o motivo, mas quando acordou, precisava da resposta para aquela pergunta. E a força que sentiu no interior de Milo naquela primeira vez, finalmente fez sentido. Axel continuou explicando sobre as tradições horríveis que os Subversitos eram obrigados a se submeter, carnificinas graças ao poder amplificador, e como havia sido proibido. Um feitiço de delambendo foi jogado sobre as populações do mundo, em todos os cantos, para que nenhuma criança nascesse com esse poder. Nunca mais tinha acontecido... até agora. Até Milo.

— Mas por que a pergunta?

Kafen não respondeu. Ela pegou um cantil cheio de água e começou a beber, dando a deixa para Hakon desviar o foco do assunto.

— Como Kafen sabe tão pouco sobre história enquanto você parece saber até mais que eu?

Axel piscou. Tentou pensar em uma resposta mas a verdade é que nunca tinha pensado naquilo. Elize não entendia dessas coisas porque gostava de passar suas tardes bordando e descansando nos jardins, Kafen...

— Acho que o treinamento sempre ocupou tempo demais dela.

— Treinamento é? — Milo debochou.

O grupo caminhou por alguns segundos em silêncio, a tensão rondando o ar por cima da cabeça de todos. Kafenia devolveu o cantil para a mochila improvisada de Hakon, e seguiu ao seu lado sem precisar de apoio. Fazia um bom tempo que ela caminhava sem precisar de apoio, sem arfar depois de dez passos. Axel estava impressionado ao ver aquilo.

— Você realmente acreditava que envenenamento e tortura eram treinamentos? — Milo explodiu, parando a caminhada e obrigando todos a imitar. — Não pode ser tão burro assim, alteza.

Um arrepio percorreu a espinha de Kafen quando ela viu a distância entre Milo e Axel, ambos quase do mesmo tamanho, seus narizes enrugados e olhares penetrantes de raiva. Elize se adiantou para intervir, mas Axel apenas ergueu uma mão, a impedindo.

— E o que você fez camponês, quando Brank levou seu irmão? Até onde sei, também não conseguiu impedir.

Aquilo fez Milo ferver. Ele estendeu as mãos contra o peito de Axel, mas o príncipe foi mais rápido e as desviou com um tapa forte. Tão forte que Milo se desequilibrou, tropeçando para o lado. Ele voltou com mais raiva, o punho estendido até... Kafen entrou no meio do caminho entre ele e seu irmão, e segurou a mão de Milo estendida no ar. Ele piscou para a princesa.

— Parem. O que aconteceu comigo não é culpa de ninguém aqui, e não tinha como terem poder o suficiente para impedir. — Ela soltou o punho de Milo, e se virou pra encarar o resto deles. — Não preciso da pena de ninguém, e guardo minhas cicatrizes para me lembrar da dor que senti. A dor que me deixou mais forte, e que vai me tornar a rainha mais humana que meu reino já conheceu. — Se virando para os dois novamente, ela continuou. — Podem se bicar o quanto quiserem, desde que não atrasem minha viagem. Meu povo, e meu irmão me esperam.

E assim, sem dizer mais nada, Kafenia apenas continuou andando na direção da descida da montanha. Na direção do mar.

Hakon não podia negar ou esconder o imenso orgulho que sentiu de sua rainha, quando ela ignorou tudo e todos e simplesmente começou a andar. Ele e Dalibur correram para desmontar o projeto de acampamento que haviam montado, e foram atrás. O resto deles parecia de fato confuso por algum motivo, mas seguiram a princesa sem hesitação.

O grupo conseguiu descer a montanha em metade do tempo que levaram da última vez. Hakon e Kafen eram os que andavam na frente, sem parecer quebradiços eles seguiam firmes durante o dia inteiro. Na primeira noite em que haviam alcançado o chão, ele contou sobre como estava se sentindo mais disposto agora. Kafenia também estava. Os dois conversaram até que o sono os levasse, ansiosos pelo dia seguinte. No ritmo em que estavam, daria tempo de chegar ao porto em menos de dois dias.

Com poucas horas de distância, o grupo decidiu não descansar nos próximos passos, apenas avançar sem parar rumo ao destino final. Kafenia tentava ignorar os olhares penetrantes de Dali e Milo, mas estava ficando cada vez mais difícil fazer de conta que nada estava acontecendo. No por do sol daquele mesmo dia, Hakon decidiu que eles deviam parar para se alimentar, gastar poucos minutos com uma fogueira e então seguir. Por isso Milo saiu para caçar, e Kafen decidiu se afastar um pouco do grupo que só crescia.

Ela sabia que era egoísmo, mas no começo era mais fácil. Com Meridwen, Elize e Axel era diferente. Seus irmãos a lembravam de uma época sombria, como se Milo, Dali e Hakon pudessem fazê-la esquecer daquilo, mesmo que por alguns instantes. A princesa ainda conseguia ouvir as vozes em conversas alegres, quase sentindo a energia caótica da união. Ela ergueu seus olhos escuros para os céus, e sentiu seu coração pesar. Ela não sentia que era o real motivo por Elize ter vindo.

Está com frio?

Só depois de escutar aquela voz familiar em sua cabeça, Kafenia se deu conta de que tremia. Ela usava roupas normais confeccionadas por Milo, porque seu macacão estava secando da última lavagem. Milo se aproximou dela devagar, e se recostou contra uma árvore. Suas botas grossas estavam cheias de neve e sangue, ele tinha duas aves e um coelho nas mãos.

— O que seria de nós sem você?

Kafen deu um sorriso fraco. Mas Milo não acompanhou o gesto. Ele largou as carnes no chão, e deu um passo na direção da princesa. Ela recuou quase que instantaneamente, dando de costas com o tronco de uma árvore atrás de si. Seu corpo todo tremeu, mas ela se recusou a pensar que não fosse de frio.

— Me diz princesa. O que seria de você sem mim? Livre?

Seu coração se acelerou. Como em um compasso de música os dois pareciam competir pra ver quem estava mais afetado. O peito de Milo subia e descia com dificuldade, os olhos pareciam turvos.

— Não fale besteiras.

Kafenia deu meia-volta para se retirar, mas Milo esticou a mão para agarrar seu pulso, impedindo-a.

— Então olha nos meus olhos, e diz que não ama meu irmão.

Amor.

A princesa tentou se soltar, mas foi em vão. Seus olhos estavam fixos nas botas ensangüentadas de Milo, e de repente não lhe parecia tão necessária aquela refeição.

— Olha nos meus olhos e me diz, que o que temos é mais forte, algo além do carnal. Consegue me dizer que o sentimento do nosso beijo chega perto do de Dalibur?

Ela não podia. Por mais provocativa que aquela situação com Milo fosse, desde as implicâncias quando se conheceram até os treinamentos e ajuda que ele fornecia... por mais que ela soubesse o quanto ele gostava dela e que provavelmente ele nunca tinha se aberto tanto pra ninguém antes... ainda assim ela não podia dizer aquilo.

— Beijo?

Foi assim que a voz doce de Dalibur, inundando a cabeça confusa de Kafen, estilhaçou aquela bolha. O garoto deixou os braços caírem ao lado do corpo, os olhos caindo para o ponto onde a mão de Milo e o pulso de Kafen se encontravam. Ela puxou sua mão mais uma vez, e finalmente conseguiu se soltar.

— Dali...

A princesa estendeu a mesma mão que seu irmão havia tocado, para ele. Mas Dali não se esquivou. Ele permitiu que ela se aproximasse e tocasse seu peito, que olhasse em seus olhos.

— E-eu, sinto muito, tentei te contar, mas...

Ela parou de falar quando o garoto a olhou de volta. A decepção em seu olhar a quebrou, e ela não tentou o impedir quando ele deu as costas, e voltou para perto do grupo.

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora