Dezessete

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Kafenia carregava um olho roxo é um lábio cortado, enquanto Dalibur possuía um nariz quebrado e hematomas pelo corpo todo. Nenhum dos dois falou nada, nem seus acompanhantes ou Hakon, até que Elize abrisse a porta.

— Deixa eu adivinhar o resumo da noite. — A princesa disse. — A única dupla que realmente procurou pelo teletransporte foi eu e Hakon?

Milo adentrou atrás dela, mas sem nenhuma marca aparente. Não, aquele garoto não foi tocado pelos corpos que o atacaram. E eram isso, apenas corpos depois que caiam desacordados aos seus pés. A raiva nele pareceu crescer quando o olhar de Kafenia se manteve em seu irmão, que a ignorava. Ele se odiava por saber que não merecia tê-la.

— Agora temos dinheiro para todos. E até um pouco mais. — Dali argumentou. — Só precisamos chegar lá em dez minutos.

O sermão ficaria para depois, eles tinham um navio para pegar. Hakon rapidamente ajudou Milo a juntar as poucas coisas que eles tinham, e em uma caminhada rápida eles saíram da estalagem. Em cinco minutos tinham atravessado a aldeia, e apenas quando suspiraram aliviados a bordo do navio em segurança, o tão esperado sermão teve início. Hakon apoiou as mãos na cintura e respirou fundo. Apesar do que parecia para os outros, ele não gostava de ter de fazer aquele papel. Como mais velho e responsável, ele tinha que relembrar o que estava em jogo mas...

— Se não tivessem entrado nos ringues, não estaríamos aqui. — Hakon deixou seu orgulho e vontade de repreensão de lado, surpreendendo a quase todos. — Não vou dizer que foi uma atitude prudente, mas hoje, foi a atitude que nos salvou. Então por isso... Obrigado a todos.

Axel apoiou o braço ao redor dos ombros da pequena irmã, e a abraçou. Kafen se recostou feliz contra aquele abraço, ao conforto que ela aprendeu a amar. O único que ela sempre teve fora dali. O grupo estava posicionado em um local aberto do barco, que não era muito grande, apenas o suficiente para caber todos sem levantar suspeitas. Marinheiros caminhavam de um lado para o outro carregando cargas nas costas, barris de água e comida. Elize observou uma criança de cerca de seis anos arrastar um barril com dificuldade ao lado do corpo. Ela e Axel trocaram um olhar intenso. Aquilo não deveria estar acontecendo.

— Já que passamos a noite em claro, — Começou Kafen entre um bocejo e outro. — podíamos ao menos aproveitar a paz para dormir.

Milo se segurou para não dizer o quão estranha estava aquela paz, quão... fácil havia sido. Se Brank pode encontrá-los da outra vez, o que impedia que ele se aproximasse agora?

— Concordo. Meridwen, quer dividir o quarto comigo?

Elize se adiantou para a garota encolhida em um canto, que brincava com os cachos negros de sua cabeça. Os olhos cintilantes dela piscaram em confusão, mas antes que qualquer chance de contestação fosse possível, a autora da pergunta lhe puxou pelo pulso, e assim as duas desapareceram no corredor escuro, que levava para a parte fechada do navio. Foi assim, que a princesa Elize pensou que encurralaria Kafenia para ter que escolher um garoto pra dormir. Porque Dali e Milo não dormiriam juntos, e não haviam quartos sobrando para que Kafen dormisse sozinha. Teria que ser um trio. E ele sabia que Hakon jamais iria dormir no mesmo ambiente que seu irmão. Ela via a forma como ele olhava para Axel e Elize.

Mas a princesa apenas se fingiu de sonsa, encarou o mar adiante e ignorou os olhares em suas costas. Ela permaneceu assim esperando que se esquecessem de sua pergunta, esperando que decidissem por si só os quartos. Eram bem grandinhos e podiam fazer isso.

— Hakon? Me acompanha?

Ou não. Milo seguiu para dentro seguido do irmão, deixando a outra dupla para trás. Três quartos, três duplas e uma garota sobrando. Talvez tê-los deixado escolher não tivesse sido uma ideia tão boa assim. Axel ignorou tudo e todos, e simplesmente marchou para o único outro quarto vazio, deixando Kafen e Dali pela primeira vez em muito tempo, a sós.

Ela tentou, algumas vezes, afastar o corpo da madeira que a impedia de cair do mar, e se virar completamente para Dalibur, encarar seu medo de frente. Ela de fato se esforçou, mas suas unhas cravadas na madeira, agora mais fortes que nunca, a impediram.

— Kafen.

Graças a atitude de Dali, isso não foi necessário.

— Me desculpa.

Ela não pode conter as palavras. Ainda virada de frente para o mar e encarando os movimentos sutis, ela apertou a madeira para que lágrimas nao rolassem.

— Só queria te contar uma coisa.

Kafenia se virou finalmente, para dar de cara com Dali. O garoto não sorria ou suavizava o rosto, mas encarava o nada e falava quase que roboticamente.

— Quando Brank me torturou, ele deixou claro que o fazia para nos desligar um do outro, pra acabar com a proteção que eu tinha sobre você.

— Tinha?

O nó na garganta de Kafenia se expandiu, ela se sentia completamente negligenciada com aquela frase. Não que ela não quisesse falar sobre aquilo, mas só imaginava que haviam outros momentos para aquele assunto. Como segundos depois de uma possível conversa sobre os problemas atuais entre eles.

— Ele nunca conseguiu quebrar a proteção de sangue que fiz com você, mas na noite em que você me curou, isso mudou.

Ele não olhava para ela em nenhum momento. Kafenia se aproximou, e como um reflexo Dali recuou. Aquilo quebrou algo profundo dentro dela, algum lugar onde ela não sabia que doía.

— Quando você deixou de lado a sua vida pra me salvar, compensou nosso laço de sangue para trazer minha vida, colocando a sua em risco.

O balanço do mar era a única resposta que Dalibur teria. Kafen não conseguia falar, simplesmente não era capaz. Ela tinha mil perguntas, incluindo "o que, pelos deuses, é um laço de sangue?!", mas permaneceu calada. Até mesmo quando ele concluiu a explicação.

— Então agora está por conta própria.

Até mesmo quando Dali deu aquelas largas costas a ela, caminhando para a escuridão mal iluminada. Para dentro do navio. As costas de Kafenia se chocaram contra a madeira fria, e ela chorou. Chorou porque viu o que havia feito, e o que não podia concertar. Chorou porque tinha quebrado a única coisa que a manteve viva por toda a sua história. Chorou porque sabia bem em qual quarto devia dormir. Mas chorou tanto, que adormeceu ali mesmo, debaixo da chuva fina que se iniciou no cais.

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora