Quatro

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A carroça era bem mais barulhenta do que Milo havia imaginado, então era possível trocar algumas frases com Kafen de vez em quando. Ele não se importava que fossem apenas duas: "Você está bem?" e "Tem certeza?", assim como não se incomodava com o fato de não ter dormido desde que haviam entrado naquele lugar. O espaço era pouco, e se ele se deitasse... Kafen perderia todo o mínimo conforto que tinha. Ela perguntava a ele se havia dormido, e ele mentia sempre. Dizia que ela tinha dormido demais, ou que ele havia perdido o sono. Tudo mentira. Ele não se importava, que a princesa o olhasse com raiva pelas mentiras. Também não cedia quando ela o encarava profundamente, mantendo a constante pressão que ele ainda não entendia.

Milo havia contado três noites, mas podiam ser muito mais, ou menos. Não haviam janelas no local, era difícil dizer. Mas no que Milo imaginou ser o quarto dia dentro daquele lugar, Kafen se recusou a deixar o silêncio recair sobre eles. Ela estava pronta para falar, e queria que Milo estivesse também.

— Não é culpa nossa.

Milo ergueu uma sobrancelha em sua direção. Nem ela acreditava naquilo. O garoto torceu as mãos enormes em cima do colo, e tentou se concentrar na batida do próprio coração. A culpa e vergonha eram suas velhas amigas, mas daquela vez era diferente. Era maior, pelos motivos que envolviam estes sentimentos.

— Você desmaiou, Hakon e Meri foram lançados muito longe pela explosão de poder. Eu não.

Dessa parte ela não sabia. Milo não conseguia encará-la naquele momento, mas se recusou a parar de explicar, não iria permitir que qualquer segredo desmoronasse a confiança que sua princesa deveria ter por ele.

— Eu fiquei acordado e vi tudo acontecer. Brank me contou o que tinha feito, seus objetivos, e tudo o que fiz... foi ficar parado. — e Milo se odiava por isso. Não teve um dia que ele não pensou na dor que Dali estava sentindo, na forma como deveria ter sido ele em seu lugar. — Brank riu, pertinho do meu rosto, enquanto explicava o que faria com Dali. E eu não me mexi.

Milo tremia agora. Toda a culpa que ele havia guardado consigo, agora transbordava por seus olhos, a força que o mantinha acordado e alerta, se desmembrava em camadas diante dela, da única mulher que jé o vira chorar. a única mulher que havia despertado aquilo nele, aquela coisa que ele nem queria entender. Milo se senti exposto, como se seu núcleo de magia fosse exibido diante do mundo, para todo e qualquer um tocar, ele não estava acostumado com isso. Ele se perguntava se era assim que as pessoas se sentiam quando choravam, se foi assim que Kafenia se sentiu na vez em que ele mesmo a fez chorar. Exposta.

Ele não esperou quando a mão pequena e fina de Kafenia deslizou pelo seu ombro. Definitivamente foi uma surpresa quando ela puxou seu pescoço em sua direção, entrelaçando-se nele. A dor então, começou a se tornar algo diferente. O medo foi substituído pelo alívio e quando a mão dela tocou seu cabelo, ele pensou que se desmancharia bem ali. Seu corpo tremeu dentro dela, parecendo menor, quase minúsculo. Suas lágrimas mancharam o couro dela, mas ela não se importou. Ali, foi ela quem não se importou para as próprias necessidades, para o medo de lugares apertados e a ansiedade de ver Dali. Todo o resto não existiu pelo momento em que eles se abraçaram.

— As sombras dele, — Kafen explicava, sem largar Milo do contato. — são paralisantes. Mesmo que você pudesse se mexer, não daria um passo sequer, sem que ele o aprisionasse também.

Aquela palavra, ativou lembranças que Milo não sabia que tinha. A cena pareceu se repetir em sua mente, mais nítida. E a frase, aquela maldita frase que ele pensou ter imaginado...

— Ele disse que não me levaria. — Kafenia o largou, apenas o suficiente para encarar seu rosto. — Disse que eu era um projeto futuro, disse que eu tinha potencial. Me chamou de uma palavra estranha... cria de Subversio.

Kafenia tentou pensar em um significado para aquele nome, mas nada lhe ocorreu. Ela se lembrava vagamente das lendas contadas pelos criados em sua infância, nas quais nunca prestou muita atenção. Mas se Brank sabia... deveria ser sério. A princesa se perdeu nos pensamentos sobre aquela pequena definição, no poder que aquelas três palavras poderiam ter. Milo não se cansava de a observar enquanto isso acontecia, aproveitando a distração. Somente ali o garoto se deu conta, de que Kafenia estava em seu colo, encaixada nele.

O pulo dela em sua direção foi tão desesperado, que nenhum dos dois havia se dado conta da proximidade. Eles só sabiam que precisavam daquilo, como da vez em que descobriram como o abraço era poderoso, no meio daquele treino na montanha. Milo estava submerso demais naquilo para se dar conta antes, mas os narizes deles quase se tocavam. A princesa olhava para baixo, para o peito de Milo que subia e descia com dificuldade. Todo e qualquer pensamento que pudesse ocupar sua mente se esvaiu no momento em que ela notou para onde ele estava olhando. Ela percebeu também a proximidade, e seu corpo todo se arrepiou.

Kafenia não conseguia se sentir culpada pelo calor que queimava sua pele, ou pelo gelo em seu estômago. Suas mãos deslizaram do pescoço de Milo, até se apoiarem no peitoral firme, que se movimentava em um ritmo acelerado agora. A respiração de ambos se entrecortou, Milo pensou que perderia o controle. Aquilo era diferente de tudo o que ele havia sentido, experimentado ou até mesmo imaginado. Quando ele pensaria, que aquela garota magrela e sem-graça causaria a ele tanta emoção? Quando ele esperara, que alguma vez em sua vida não odiaria o fardo de ter que viver por alguém? Ali naquele momento, ele nem se lembrou daquela palavra.

Milo teve a certeza de que seria um prazer, e uma honra viver por sua rainha.

Kafenia tomou a coragem necessária para erguer os olhos, e apertando os dedos fortemente contra o tecido da camiseta de Milo, ela o encarou. uma explosão de tudo tomou conta dela, dourado, cinza e branco se misturaram, uma repartição do mundo se desmembrou ao redor deles, mas estavam alheios à isso também. Eles estavam alheios a tudo, menos um ao outro. Menos ao que sentiram quando aquela carroça explodiu no meio da estrada, fazendo peixes e carroceiros voarem longe, com um simples encostar de lábios.

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora