Dezoito

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Durante toda a vida, Kafenia foi considerada fraca. Não apenas fisicamente, visto por todos a forma como ela era, mas emocionalmente também. Qualquer coisa a deixava pra baixo, e mesmo que ela não chorasse ou gritasse com frequência, ficava clara a forma como sua cabeça se mantinha abaixada o tempo todo. Ela pensou que podia deixar de ser assim enquanto estivesse ali, que devesse talvez sair de sua própria casca só um pouquinho... mas estava errada. Tão profundamente errada que seu peito se apertava até mesmo durante o sono. Um pesadelo a recebeu, onde havia sangue e morte, dor, uma dor maior e diferente, tudo estava confuso. Ela não conseguia andar e se mexer, e quando acordou, pensou estar morrendo.

— Ei, ei... calma.

Milo a segurou pelos ombros, a impedindo de tremer violentamente contra o chão. Os olhos cheios de lágrimas buscavam por algum consolo, confusos entre o sonho e a dor do mundo real. O peito de Milo se apertou quando os dedos finos de Kafenia se fecharam no tecido de sua camiseta, trêmulos com os nós brancos pela força aplicada neles.

— Tá tudo bem.

Sua voz se suavizou, inconscientemente a princesa se inclinou na direção dele. Ainda surpreso, ele não pensou duas vezes antes de envolvê-la em um abraço, demonstrando o quão protegida ele a manteria. Os dois haviam passado por muita coisa juntos. E mesmo que ela amasse seu irmão, Milo percebeu que aquilo nunca apagaria o sentimento que ardia em seu peito. Ele não tinha o direito de interferir, mas também não tentaria sufocar. Ele queria sentir, mesmo que doesse. Fazia-o sentir vivo.

— Eu...

A voz da princesa estava falha. Como se ela tivesse gritado por horas, o que de fato não era o caso. Nenhum som alto demais saia de sua boca. Nunca.

— Eu vou morrer.

O coração de Milo se acelerou loucamente. Em um movimento repentino ele a afastou de si, e encarou seu rosto completamente encharcado em lágrimas.

— Não. — A voz de Milo soou dura. — Não vai não.

O olhar da princesa nao revelava nada. Estava perdido na realidade iminente. Aquilo não fora um sonho, mas uma visão.

— Sim. No final disso tudo, quer leve uma semana ou um ano. Vou morrer. Estou destinada.

Milo não conseguia acompanhar o raciocínio de Kafenia. E de repente nenhum de seus problemas pareceu ter a mínima importância diante dela, diante daquilo.

— Olha aqui Kafen. — Milo ergueu uma mão para a bochecha molhada de Kafenia, erguendo seu rosto para ele. Seus olhos castanhos estavam mais claros, efeito das lágrimas cristalinas. Ele teve que engolir em seco para conseguir continuar. — Não existe esse negócio de destino. Nós fazemos nosso futuro e eu te garanto aqui e agora, que enquanto eu viver, você não vai morrer.

Um sorriso triste. Aquele erguer de lábios que não arrancava o olhar pesado do rosto, foi o que fez Milo se dar conta. Algo estava errado ali.

— A proteção de Dali se foi. O negócio de sangue, seja lá o que seja.

O chão de madeira pareceu tremer debaixo de Milo. Em um instante ele a tranquilizava, no instante seguinte parecia completamente exposto e vulnerável. Aquilo mudava tudo. O juramento de sangue entre Dali e Kafenia, era a barreira mágica mais poderosa que já fora forjada na história. Foi o que manteve herdeiros vivos em tantos impérios desde séculos atrás.

— Não tava só me protegendo né? Essa barreira. — A princesa começava a entender. — Tem mais coisa aí.

Sim, tinha. E Milo nunca entendeu direito, mas estava determinado a explicar o pouco que sabia. Mesmo que apenas para parar de pensar naquele assunto apenas por alguns instantes.

— Aquela barreira também parava o poder do Hakon. Era uma barreira de sangue entre nós três e você, como três pilares do equilíbrio ligados a um centro em comum. — Milo juntou as mãos no colo, tentando representar com os dedos largos a ligação. — Acontece que quando um pilar se rompe, todos caem. O que nos mantinha em harmonia era você.

— O que acontece agora?

Era difícil pensar nisso. Nenhum deles tinha muita noção, aquilo nunca havia sido registrado antes.

— O poder do Hakon é o mais perigoso. É importante que você não toque nele. Eu... não sei se vou poder controlar o meu agora. Sabendo disso podemos evitar de usar.

— Pensei que Hakon não tinha poderes.

Milo respirou fundo. Ele era péssimo naquilo. Simplesmente odiava falar, porque sempre que o fazia se confundia no meio e assim as pessoas saiam ainda mais confusas. Mas Hakon jamais explicaria aquilo para Kafen, e Dalibur estava a tratando mal então... ele organizou as ideias antes de tentar novamente.

— Ele tinha quando morava no reino branco. Depois que recebemos os poderes do rei, nossos poderes originais foram silenciados. Isso graças à barreira de sangue. Acontece que o poder que Hakon recebeu, foi anulado pelo poder original, de tão... destrutivo que era. Agora que está liberto...

Um calafrio percorreu a espinha de Kafenia quando o medo tomou conta do olhar de Milo. Ela só havia visto seu olhar daquela forma uma vez, quando Brank os encurralou na aldeia. Brank... que poderia tê-los achado ali, que com certeza sabia onde eles estavam e decidiu não interferir. Por que? O motivo ficava cada vez mais claro na cabeça imaginativa de Kafen. Conforme as peças se juntavam e o sol nascia em suas costas, o calor irradiou nela de dentro para fora. O medo.

Brank não precisava pará-los, porque os queria longe. Porque descobriu antes dela que eles carregavam uma bomba consigo. Hakon faria o trabalho por ele.

— Qual era o poder dele Milo?

Ela não tinha certeza de queria saber. Aquela sensação sufocante de seus pesadelos tomou forma novamente, mesmo que em uma proporção significativamente menor, estava ali. Esteve ali quando Milo teve que pensar duas vezes antes de responder, e quando aqueles olhos cinzentos se fixaram nos seus com medo genuíno.

— Ele suga, absorve e retém magia. Energia vital. O Hakon...

— Eu consigo absorver a pessoa até que ela se autodestrua, levando até um certo raio de destruição comigo.

Hakon encarou o horizonte atrás deles. Kafenia se sentiu aliviada por chamá-lo de amigo.

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora