Vinte

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Milo prometeu a si mesmo que manteria distância da princesa, na medida do possível. Mas quando viu as duas irmãs se encarando daquele jeito... a mágoa em Kafen era grande demais para que fosse aliviada naquele navio. Ainda mais sem entender direito o modo como sua magia funcionava, Milo não queria acabar no fundo do mar depois daquilo tudo. Por isso, e apenas por isso ele a chamou. E ignorou o olhar penetrante de Elize em sua direção. Aquilo ele resolveria depois.

— Se cansou dela?

Kafenia se aproximou do local onde ele costurava uma capa fina, com uma camada de tecido para não esquentar muito o corpo. Se sair de um inverno rigoroso para um verão escaldante tinha uma vantagem, era o tecido extra que sobrava das roupas.

— Não queria que ficasse esse clima entre nós.

A princesa se inclinou sobre as agulhas, e pegou uma entre os dedos. Com cuidado, imitou os movimentos de Milo do outro lado do tecido, ajudando a forrar com couro.

— É minha culpa também. Não devia ter feito isso.

Silêncio reinou entre eles. Ele quis perguntar "isso o que?" mas tinha medo da resposta. Suas mãos continuaram trabalhando por um tempo, até que a curiosidade de Kafen estalasse novamente.

— Qual era seu poder? Antes de receber o laço de sangue?

Uma aura sombria tomou forma nas feições de Milo, e por um segundo, Kafen não viu um garoto ali. Nem um ser desprezível apesar das sombras que contornavam ele. Ela viu um príncipe.

— Sabe a voz que fala na sua cabeça?

Uma brisa salgada correu por eles, movimentando de leve os cabelos espessos de Kafenia. Ela concordou com a cabeça, sem tirar os olhos de seu trabalho manual.

— Eu controlava mentes com ela. Com dois anos eu conseguia fazer um pássaro parar de voar. Ou de respirar.

O choque da resposta desequilibrou as mãos de Kafen, fazendo com que a agulha escapasse de seus dedos firmes, e se fincasse na carne de sua mão. Ela chiou baixinho, e Milo a ajudou a tirar. Com um cuidado nítido ele puxou a agulha, e pressionou com o dedo o pequeno furo de onde saiu sangue. Sem tirar os olhos do dedo dela, ele continuou.

— Meus pais sufocaram um pouco meu poder antes de nos mudarmos. Talvez por isso o juramento de sangue não tenha se desenvolvido muito bem em mim. Na verdade só deu certo mesmo em Dalibur.

Milo retirou o dedo de cima do de Kafen, e como consequência uma pequena bolha de sangue surgiu. Sem aviso prévio, ele puxou a mão da princesa até seus lábios, e... chupou seu dedo. Kafenia pensou que explodiria ali mesmo, e ficou tão vermelha que um tripulante teria a abordado oferecendo ajuda se Milo não fosse tão ameaçador. O garoto nem notou o efeito que havia causado nela.

— M-mas.. — Ela tentou recuperar a compostura quando Milo tirou seu dedo da boca, e começou a enfaixar com um pedaço de tecido.— O que aconteceu com Hakon então?

Aquilo foi um erro. Milo já tinha explicado a ela sobre como o poder anulador de Hakon tinha anulado o que ele tinha recebido de seu pai. Mas aparentemente não tinha contado tudo.

— Acho que o poder específico que ele recebeu, deve ser oposto ao que ele tinha.

Milo voltou ao seu trabalho depois de enfaixar o dedo de Kafen, costurando mas ainda concentrado nela. Aproveitando o silêncio dela em relação ao novo assunto, ele perguntou:

— Me diz que amassou os oponentes naquele bar.

Uma risada rouca saiu de Kafenia, ao se lembrar daquele momento. Seu irmão quase a arrastou para fora dali, mas ela teve tempo de enfrentar um ou dois.

— Aprendi a usar o peso deles ao meu favor, como você me ensinou. E aparentemente meu corpo está menos frágil desde que treinamos.

Milo ergueu uma sobrancelha sem tirar os olhos do tecido em suas mãos, e riu baixinho.

— Só acredito vendo.

E com uma motivação inexplicável, Kafenia se levantou da cadeira e apoiou as mãos na cintura, decidida.

— Então vamos. — Milo ergueu sua costura, e Kafenia revirou os olhos. — Vai usar sua costura como desculpa? Está com medo?

Quando Milo estreitou seus olhos de prata, Kafen soube que tinha ganhado.

E ali estavam eles, punhos erguidos e olhares fixos um no outro, uma boa quantidade de expectadores na parte de cima do navio. A atmosfera salgada preenchia o pulmão de Kafenia, a ansiedade latia em seus ouvidos. Milo deu o primeiro passo, curvou o tronco e socou. E com uma agilidade que nem ela sabia de onde tirava, Kafen desviou. A princesa apoiou os dois pés firmes no chão, e socou de volta. Sem muita mira ela acertou nas costelas dele, e como força não era seu ponto forte, aquilo não fez muito efeito.

As pessoas os observavam com o máximo de atenção, intrigados com aquela pequena criatura desviando tão bem do brutamontes diante deles. Milo prolongou aquela luta por mais alguns minutos, se divertiu com as expressões de indignação quando Kafen percebia que ele era atingido de propósito, e se deliciou na alegria que retomava seu rosto. Fazia muito tempo que ele não a via assim, suando e gargalhando, o ar faltando em sua garganta, o corpo trêmulo e os olhos cheios de emoção. Ele amava aquilo. Amava ela também.

— Chega.

Kafenia ofegou por ar quando seu corpo desabou de exaustão, Milo se sentindo quase igualmente cansado. Os dois se deitaram no convés ali mesmo, debaixo do sol e dos olhos curiosos, que se dissiparam em alguns segundos.

— Isso foi...

Kafen não sabia se tinha palavras para descrever o que sentiu. Como sua mente pareceu se desligar de todo e qualquer pensamento ruim, como seu corpo só reagiu a cada um dos golpes e se tornou... leve.

— Sim. Foi.

A voz de Milo estava recheada de emoção. Com aquele tipo de emoção que não se pode esconder, que enche o peito e em algum momento explode pelos olhos. Ele teve medindo que isso acontecesse, e por isso se levantou em um salto. Deixando Kafen e qualquer prova de que alguém pudesse ter visto aquilo, aquela pequena lágrima.

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora