Dez

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Uma avalanche parecia ter soterrado Kafenia durante a noite, mas ela ainda se sentia grata. Mesmo com as revelações de horas atrás, mesmo que Dalibur não tivesse demonstrado sinais de que iria acordar nos minutos seguintes. Ela se levantou de manhã, e usou uma camiseta suja de Hakon para estancar o sangramento de suas narinas, acostumada com a dor latente e gelada. Respirando pela boca, ela se afastou do local onde seus amigos descansavam, e subiu uma pequena colina não muito distante. O nascer do sol a presenteava com o laranja belo manchando o sol, uma paz tomou conta do seu peito. De alguma forma ela sabia que conseguiriam superar aquilo, sentia que tinha alguém cuidando deles.

— Podem me ouvir? — Ela perguntou pro céu. — Obrigada. Seja lá quem você for, qual dos grandões aí em cima. Obrigada.

Uma brisa suave beijou sua bochecha úmida pela neve, fazendo cócegas pelo seu corpo. Foi como uma resposta.

— Eles ouviram.

Kafen deu um pulo quando Dalibur apareceu ao seu lado, com aquele sorriso de sempre. Sem pensar muito nas consequências, ela o abraçou com toda a saudade que havia reunido, e ele a apertou de volta. Os dedos do garoto se curvaram contra o tecido colado do macacão, e ele sentiu as costas dela como se o tecido não estivesse ali. Inspirando fundo Dali inalou seu cheiro, o perfume que ele tanto sentia falta. Ela só conseguia chorar, e enterrar a cabeça em seu pescoço para senti-lo também. Nenhuma proximidade parecia o suficiente.

— Eu senti tanto a sua falta Dali.

A princesa se afastou para olhá-lo nos olhos, aquele verde de ceda com o anel dourado. Olhos brilhantes como faróis que a conduziam na escuridão, uma parte dela parecia ter retornado com ele. E com a culpa. Dalibur não deu tempo para que ela confessasse ou tentasse explicar, ele nem sequer percebeu que havia algo de errado na forma que ela o olhava. Dalibur precisava dela, depois daqueles dias longos no chão daquela caixa de ferro, ele precisava tocar a única coisa que ainda mantinha uma parte dele lutando.

Com as mãos firmes em sua nuca, Dalibur puxou Kafenia em sua direção. Ela não teve tempo nem forças de recuar, em meio segundo seus lábios estavam colados. Nos instantes seguintes ela se esqueceu de tudo. Os concelhos de Hakon pareciam vagas lembranças quando Dalibur abriu caminho com sua língua, e quando eles finalmente se encontraram por completo, ela não se lembrava nem de onde estava. O mundo, seu nome e até o motivo pelo qual vivia, eram nada. No existia ele ali, Dalibur, o nome que havia rodeado sua mente durante tanto tempo, o homem que a segurava com a firmeza e delicadeza certos ao mesmo tempo, a segurança da sua vida. Ele quem havia mantido seu corpo vivo, e depois revivido a alma também. Naquele beijo, naquele pedaço do que os dois poderiam ser, Kafenia conseguiu tocar uma parte do poder dele. Algo além das mãos firmes dos dois tocando um ao outro, algo em segundo plano começou. Dalibur sentiu quando o poder dela despertou, quando aquela onda dourada entrou em cena, tocando seu interior de uma forma que ele nunca pensou que seria possível.

A princesa se maravilhou em seu sabor quando seu poder avançou, sem saber direito como controlar aquilo. Os olhos fechados e a concentração nele, ela o sentiu mais e mais, até que estivesse completamente imersa naquele poder. Uma parte daquilo, aquela grande extensão que assustava a todos, o que Dali tinha medo de que qualquer um visse de perto. Kafenia chegou até lá, e de uma forma fluida o viu. Ali estava ela, a única pessoa no mundo que viu a Dalibur completamente de todas as formas mais transparentes possíveis, e não teve medo. Pelo contrário, ela apenas se abriu ainda mais para ele, a confiança entre os dois se tornando um eterno laço incontestável. Kafenia se sentiu em casa quando ele encontrou seu poder, ainda mais quando suas bocas se desgrudaram e aquele anel dourado pareceu brilhar mais forte ao olhar pra ela.

— Acho que sei como libertar seu poder.

Kafenia precisou daquilo. Ela precisava de Dalibur e só se deu conta quando ele foi levado. A traição em sua consciência lutou para sair de sua boca, mas a curiosidade foi mais forte.

— Como?

As vozes dois dois estavam roucas, as respirações ofegantes soltando pequenas nuvens de fumaça no ar. Os corpos ferviam.

— Quando toquei... no seu poder. Acho que criei uma espécie de memória muscular, pra magia. Talvez eu possa te ensinar a usá-lo.

Aquele sonho, a visão de ter sua terra reestabelecida finalmente pareceu palpável. Parecia cada vez mais perto, ainda mais possível a cada vez em que ela olhava naqueles olhos. Dalibur era esperança, era sua salvação. Kafenia sabia que não o merecia, quando se lembrava de como se sentiu com o beijo de Milo, quando se lembrava das coisas ruins que já havia pensado e planejado. Mas mesmo assim, ali estava ele. Sorrindo e brilhante com aquela ideia que jamais ninguém teria, com aquela magia além da mágica, aquela que vinha do que ele era.

— Eu acho realmente que poderíamos começar amanhã. Seria uma boa ideia usarmos esse tempo pra criar certa distância entre nós e...

Dalibur não conseguiu completar a frase. Kafenia sentiu o corpo do garoto escorregar do seu antes que sua voz terminasse de pronunciar as palavras finais da sentença, caindo no chão com pouco impacto graças ao esforço da princesa. Sem entender do que se tratava aquele desmaio, ela segurou sua cabeça com cuidado, e desesperada procurou por algum sinal em seu corpo. Foi quando uma linha negra fina e quase imperceptível começou a se formar em seu pescoço branco, subindo como se seguisse o curso de uma de suas veias. Não parou até atingir o queixo, e Kafen não pensou duas vezes antes de abrir sua camiseta ao meio, rasgando algumas partes e estourando alguns botões.

Sua boca secou quando ela viu. Havia um buraco enorme localizado perto da sua cintura, do lado direito do corpo. Desse buraco jorrava sangue escuro, e ela se odiou por não ter notado antes. Veias negras da cor do sangue se espalhavam a partir daquele buraco, uma infecção se alastrando.

— Então piorou.

Elize apareceu da floresta. Se adiantando para ajudar Kafen a carregá-lo até o acampamento. A princesa rezou mais uma vez, tão desesperada que colocou até sua vida em jogo.

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora