Oito

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O grupo estava sentado em roda ao redor de uma fogueira, distantes o bastante para não se tocarem, mas perto o suficiente para que Hakon enxergasse as cicatrizes mais fracas na pele clara de Kafen. Ele percebeu o medo nítido nos olhos da amiga, ao assistir o crepitar da fogueira sem questionar, aceitando que denunciavam sua posição. Hakon torcia para que os outros acampamentos de caçadores da região ajudassem a encobri-los, dando assim a chance de se esquentarem naquele gelo de clima. Era para o inverno ter se amenizado uma semana atrás, no festival em que os fogos subiam ao céu. Mas isso não aconteceu; e agora o dever de Hakon era manter Kafen segura, nem que fosse dela mesma.

— Onde ganhou essa?

Nem que fosse distraindo a princesa de seus pensamentos, com suas perguntas. Kafen abaixou os olhos para a cicatriz em sua palma da mão direita, uma linha grossa e desigual que marcava de uma ponta à outra. Um sorriso fraco se formou nos lábios dela, não pelo motivo daquela marca, mas por estar longe dele.

— Essa aqui foi quando derrubei uma espada especial de Brank. Ele me furou com a espada e disse que rasgaria em cima cada vez que eu fosse desastrada com essa mão. — Ela quase conseguia se sentir o calor do sangue escorrendo por sua pele. — Derrubei muitas coisas depois disso, e ele cumpriu a promessa. Cada vez nova, fazia um corte em cima do corte anterior, na maioria das vezes não dava tempo de cicatrizar.

Meti estremeceu do outro lado da fogueira, mas Kafen não pareceu se incomodar com a curiosidade de Hakon. Ele percebeu o quão distraída ela precisava estar, e por isso prosseguiu.

— E essa?

Ele indicou um corte grosso e curto bem acima de sua clavícula, exposto pelo corte da gola de seu macacão. Milo ergueu o olhar para a pele pálida marcada, se lembrando de que aquela foi a primeira marca que havia visto nela. Quando a desprezou.

— Foi no meio de um jantar. Eu interrompi a conversa de Brank, e ele jogou uma faca suja de frango em minha direção. Deu tempo de que Axel me puxasse para o lado, e se não fosse isso... teria acertado minha garganta. — Meri segurou um suspiro de terror. — Ele disse que da próxima vez que eu o interrompesse, não erraria. Felizmente eu me lembrei de não cometer o mesmo erro.

A princesa era tão silenciosa. Mesmo no começo daquela jornada, quando Dali contava piadas e puxava assuntos, ela não falava mais que o necessário. Hakon se perguntava se aquilo era um reflexo da repressão que havia sofrido por anos, Milo tinha certeza. Meri só queria saber mais. Sobre sua rainha, sua força. Ela estava completamente maravilhada com o poder daquela mulher, sem precisar tocar em um pingo de magia.

Então subitamente algo inesperado aconteceu. A princesa se levantou diante deles, e sem nenhum aviso, abaixou a parte de cima do macacão. Seus cabelos agora espessos cobriam seus seios, mas ela não deixou que vissem muito até que ela se virasse de costas para o grupo. O suspiro que Meri havia segurado saiu como um barulho de agonia e horror, Hakon se levantou em um salto quando viu, e Milo fervia de ódio. Porque ele sabia o culpado daquilo. Todos esperaram em silêncio quando Kafenia cobriu as costas dilaceradas por cicatrizes enormes e tortas, espessas de tal modo que até em um abraço eram perceptíveis.

— Quando eu tinha dez anos, briguei com Brank. — A princesa contou quando fechou sua roupa e se sentou de volta em seu lugar. — Foi a primeira vez que ele me machucou de verdade, porque meus pais e Axel estavam fora. Ele deu um tapa em Elize, e quando lhe dei um soco no queixo, ele ficou enfurecido. Me pegou com toda força e me lançou contra uma janela de vidro, do segundo andar do castelo. — Kafen engoliu em seco, a dor retornando até suas veias. — Minha coluna quebrou junto com algumas costelas, o vidro junto com o impacto... dilaceraram e abriram mais do que o normal.

Os olhos dela estavam perdidos naquele fogo dançante diante deles, sua mente vagava pelas lembranças. Aquilo os lembrava da urgência de seu objetivo, do que Dali estava sofrendo naquele lugar.

— Levaram três dias para me reconstruir, tirar cada fragmento de vidro foi difícil. Os curandeiros nunca conseguiram explicar o porquê eu ainda estava viva.

— Mas agora você sabe. — Milo completou.

E sim, ela sabia. Por Dali, que mesmo de longe e sem conhecê-la forneceu sua magia, sua ajuda. As cicatrizes formigaram em suas costas, um lembrete silencioso. Kafenia engoliu em seco, o peso da responsabilidade a sufocava. E não estavam nem no começo. Dúvidas se formavam em sua mente preocupada, se ela não fosse capaz de salvar Dali, como encontraria seu irmão? Como ela, aquela garota fraca e quebradiça, reergueria um reino inteiro das cinzas? Seus olhos pesaram. Hakon passou um braço por cima de seus ombros e deixou que ela se deitasse em seu peito. O tipo de coisa que Dalibur faria, se ele estivesse ali.

— Vamos achá-lo. Amanhã.

Milo também parecia confiante, e Meri não ousou duvidar. Eram um grupo inusitado, não possuíam magia ou força em grande escala. Mas tinham um ao outro, e aquele vontade ardente dentro do peito, o que não os deixaria sucumbir. Dalibur havia mantido o corpo de Kafen funcionando, mas quem havia a impedido de quebrar não foi ele. Não foi a imortalidade que a manteve sorrindo apesar daquilo tudo. Não foi o poder e a magia que não deixaram que a esperança se dissipasse. Mas aquele igual. Axel que o tratava como irmã, e Hakon que parecia tão fraco quanto ela, mas ainda era capaz de sorrir. Kafenia se permitiu fechar os olhos e relaxar naquele colo ossudo, naquele garoto que havia a ajudado desde muito antes, sem nem precisar toca-la. Eles eram amigos desde antes de se falarem pela primeira vez, quando cartas espalhadas pelo chão os uniram. Ela podia contar com os olhares distantes dele, e sabia que ele era o único que podia entender sua dor. Hakon era seu melhor amigo. E Kafenia era sua rainha.

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora