Três

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Axel amassou o papel pela milésima vez, e jogou-o na pilha dos mil outros papéis no chão. Elize ignorou o ato do irmão, imersa demais em seus pensamentos para se preocupar. O objetivo era nobre, tentar convencer a própria população que não havia nada a temer. Mas como transmitir uma mensagem assim se nem ele acreditava nisso? Dois dias atrás, quando sua família desfilou pela varanda real afim de assistir o festival dos fogos em público, dois dos quatro filhos do rei não estavam presentes. E Brank fora visto horas depois na pequena aldeia do porto famoso do país, então restava Kafenia. A princesa fraca, conhecida por ser amaldiçoada, o elo fraco que tantos supunham que seria o primeiro a se quebrar. A partir daí tudo começou. A fofoca dos empregados, as suposições do povo, até chegar no ouvido do reino cinza. De alguma forma, aquele país de onde nunca se tinha notícia, o único apoiador da ilha branca, ficou sabendo.

Foi depois da grande captura de Brank, que o primeiro grupo de rebeldes apareceu. Provavelmente após terem subestimado as forças do castelo, conseguiram entrar pela parte aberta dos jardins que dava para a floresta, e atacaram os guardas que protegiam a entrada. Não demorou muito para os reforços chegarem, e até o próprio Brank entrou na briga para punir os responsáveis. Armados com madeira e pedra, pareciam movidos apenas pela raiva. Raiva de um povo inimigo.

— Como sabe se são prateados? — Prateados ou cinzas, eram chamados pelos dois nomes. — Podem ser apenas rebeldes comuns e vermelhos.

Elize tentou acalmar o irmão. A garota tremia por baixo dos muitos tecidos do vestido, mas mantinha o sorriso.

— Porque eu vi o olhar deles Elize. E não era só revolta. Era ressentimento, vingança.

O príncipe apertou os dedos contra a testa, pensando. Uma carta seria inútil.

— Devíamos ter ido com ela?

A voz de Elize estava fraca, como ela se sentia no momento. Como deixaram aquilo acontecer? Como fingiram não ver, as dores de sua própria irmã. Kafen era a mais nova, a mais inocente, e ainda assim... a mais manchada pelo próprio sangue. Quanto tempo levaria para que ela quisesse o sangue deles também? Elize não a culparia, se a vingança a alcançasse. Ela aceitaria seu destino. Mas Brank... Ele a amassaria sem nem piscar. Elize se afastou de Axel, e decidiu atravessar o imenso corredor entre os quartos dos irmãos. Não haviam ruídos no corredor, Brank saíra para caçar. Seus pés calçados com enormes saltos a levaram até aquele quarto enorme, mas escuro no fim do corredor. Em segundos ela já havia fechado a porta, e se ajoelhado diante do garoto trêmulo e ensanguentado. Exatamente como ela havia encontrado Axel poucas semanas atrás.

Seu irmão foi punido, por ter ajudado Kafenia a fugir. Aquilo não foi uma luta, foi tortura de assistir. Enquanto Brank desfilava para fora do pátio de lutas com um lábio cortado, Axel agonizava no chão, sangue saindo por tantas partes que Elize se esqueceu de respirar por alguns momentos. Ela provavelmente acabaria daquela forma se Brank a pegasse ali. E de repente ela entendeu todo o medo de Kafen. Suas mãos se ergueram até a abertura da mordaça de prata, e sem pensar nas consequências, ela a abriu.

O garoto soltou um suspiro de alívio tão alto quando o metal atingiu o chão, que Elize sentiu suas pernas tremerem. Ela ergueu os olhos para o rosto ensanguentado do garoto, para as listras de sangue e ferro que encontrou pelo seu corpo.

— Ele pensa... — O garoto tossiu no meio da frase, a voz falhada e quase inaudível. — Pensa que se me enfraquecer, vai derrotar Kafen.

A princesa se levantou e correu pela jarra de água que Brank mantinha ao lado de sua cama. Então ajudou o garoto a beber, e usou o próprio pano que sempre carregava consigo, para tentar limpar as feridas do garoto. Mas ele recuou. O rapaz estava dilacerado e acorrentado naquela jaula com apenas a tampa de fora, e mesmo assim, recuou.

— Ele vai perceber que você esteve aqui.

Por ela. O garoto podia se aproveitar da ajuda, mas se afastou por ela. Ele deveria odiá-la, especialmente por toda a ajuda negligenciada a Kafen.

— Não me importo.

Elize escalou a pequena parede da caixa e entrou, se sentindo instantaneamente sufocada pela prata. Como diabos aquele garoto suportava aquilo? Elize tocou o rosto dele com cuidado, e foi como sentir Kafen. Aquela magia que ela sentia dentro da irmã, lutando, brigando para sair... Estava ali também. Ela quase se distraiu o suficiente para se esquecer das feridas abertas do garoto.

— Meu nome é Dalibur.

A princesa sorriu.

— O meu é Elize.

O garoto sorriu também. Eles se encaravam agora, viam um ao outro.E Elize pode ter pensado, que aquela era a primeira vez que via alguém de verdade. A noite pareceu ficar menos densa, a escuridão no quarto de Brank se dissipava. Os olhos verdes de Dali, iluminaram o interior da princesa, aquele anel dourado ao redor da pupila, era a coisa mais linda que ela se lembrava de ter visto. Enquanto isso, ele se perdia no azul ciano que formava a íris da princesa, o que era estranho porque ele poderia jurar que tinha visto um tom de turquesa da primeira vez que a viu.

Aquilo sumiu da mente do garoto, quando a princesa começou a limpá-lo. Ele se encolhou com o primeiro toque do tecido, mas depois se acostumou. Os cabelos de Elize caíam por cima de seus ombros, fazendo cócegas na pele exposta de Dali, como uma cascata de ouro. Aquele cabelo era macio, brilhante, saudável. Diferente do castanho opaco de Kafen, dos fios quebradiços que o veneno constante causou.

— Minha magia manteve ela viva.

Dalibur não sabia por que havia aberto a boca, ainda mais quando a princesa ergueu os olhos para ele. O garoto se esqueceu até do que falava quando lágrimas brotaram dos seus olhos. Elize pensava que era um tipo de misericórdia divina, Kafen se manter viva por tanto tempo.

— Obrigada. — Sua voz se embargou. — Mas... como? você nem trabalhava aqui...

Dalibur se sentiu na obrigação de contar, tudo. Ele confiava na princesa, mesmo depois de tê-la visto apenas duas vezes de perto. Ela poderia entregá-lo, ou simplesmente debochar dele. Porém uma parte dele sabia que ela não faria isso. E se fizesse... bom, ele já estava morto mesmo. Kafen atravessaria o mar até as ilhas de sua tia em breve, e logo tudo estaria acabado. Ele fizera sua parte, garantira que a princesa chegasse até ali em segurança. Dali suspirou de alívio quando se lembrou daquilo, e se concentrou em contar a princesa tudo o que ele sabia.

Quando terminou, seus olhos se fecharam, pesados. Um cansaço diferente tomou conta do seu corpo, e depois de muitos anos... Dalibur descansou.

O príncipe das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora